Friday 12 November 2010 2 comments

A moça tecelã


Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo se sentava ao tear.

Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.

Depois, lãs mais vivas; quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que, em pontos longos, rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

Mas, se, durante muitos dias, o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava seus dias.

Nada lhe faltava. Na hora da fome, tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor-de-leite que entremeava o tapete. E, à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas, tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha e, pela primeira vez, pensou como seria bom ter um marido ao lado.

Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E, aos poucos, seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.

Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma e foi entrando na sua vida.

Naquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária, disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor-de-tijolo, fios verdes para os batentes e pressa para a casa acontecer.

Mas, pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Por que ter casa, se podemos ter palácio?, perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.

Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça, tecendo tetos e portas, e pátios, e escadas, e salas, e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto, sem parar, batiam os pentes, acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal, o palácio ficou pronto. E, entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

— É para que ninguém saiba do tapete, disse.

E, antes de trancar a porta a chave, advertiu:

— Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!

Sem descanso, tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos; os cofres, de moedas; as salas, de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E, tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E, pela primeira vez, pensou como seria bom estar sozinha de novo.

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E, descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para outro, começou a desfazer o seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois, desteceu os criados e o palácio. E todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz que a manhã repetiu na linha do horizonte.

 

COLASANTI, Marina. Doze Reis e a Moça no Labirinto do Vento. 6. ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1982.

In: http://www.construirnoticias.com.br/asp/materia.asp?id=673

Sunday 12 September 2010 0 comments
"A gente pode

morar numa casa mais ou menos,

numa rua mais ou menos,

numa cidade mais ou menos

e até ter um governo mais ou menos.

A gente pode

dormir numa cama mais ou menos,

comer feijão mais ou menos,

ter um transporte mais ou menos,

e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.

A gente pode

olhar em volta e sentir que tudo está

mais ou menos.

Tudo bem.

O que a gente não pode

mesmo, nunca, de jeito nenhum,

é amar mais ou menos,

é sonhar mais ou menos,

é ser amigo mais ou menos,

é namorar mais ou menos,

é ter fé mais ou menos,

e acreditar mais ou menos.

Se não a gente corre o risco de se tornar

Uma pessoa mais ou menos". - Chico Xavier
Wednesday 8 September 2010 0 comments

A última crônica - Fernando Sabino (paráfrase)


Próximo a minha casa, busco refúgio em uma padaria para saborear um cappuccino. Como sempre, luto contra o ato solitário de sentar-me diante do computador e escrever. As palavras me assustam. Adoraria, só por alguns momentos, tecer com efervescência à Sabino ou Veríssimo, extraindo do cotidiano quadros e alegorias da essência humana, com o intuito de descerrar as cortinas que nos impedem de enxergar a vida com mais humanidade. Algo banal, corriqueiro. Frenética busca que esbarra em minha completa e total ausência de mim mesmo.

Nem mesmo as crianças que pedem pastel para um moço bem vestido na barraca da feira logo adiante, nem as buzinas, freadas, sons de batida de automóveis, xingamentos. Nada me inspira na busca pelo essencial. E, nesta ausência de ideias, sorvo o cappuccino, mirando o televisor que transmite um jogo de futebol de dois times inexpressivos da série B do Brasileirão, enquanto o verso do poeta fixa morada em minha lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”.

Decididamente, não sou poeta e fugiram-me todos os assuntos. Percorro, mais uma vez, todo o ambiente com meu olhar, vasculhando minuciosamente cada fresta de pensamento para compor minha crônica.

Noto, bem ao fundo da padaria, um casal de nordestinos que se sentou ainda há pouco, numa das últimas mesas. Seriedade no olhar, traje humilde, usado somente em ocasiões especiais, ausência de palavras e gestos. Soma-se a presença de uma menininha de seus três, quatro anos, fita amarela no cabelo, vestido humildezinho, bem posicionada à mesa: sequer tem a curiosidade de olhar para o lado ou mesmo de piscar os olhos. Pai, mãe e filha. Três seres mirrados que formam uma das células da sociedade preparam-se para um evento que não se restringe somente a uma simples refeição para acabar-lhes com a fome estampada em seus rostos.

Redobro minha atenção. O pai conta vagarosamente as moedas que tirara de uma carteira, silenciosamente. Busca com o olhar o garçom, apontando um pedaço de bolo sob a grossa redoma de vidro. A mãe mantém-se estática, aguardando com paciência a resposta do garçom. Este, atentamente, anota o pedido em um bloco de jogo-do-bicho e se afasta para atendê-los.

Os olhos da mulher brilham, apesar de insegurança de sua presença naquele local. Ao meu lado, o garçom solicita o pedido do freguês ao atendente atrás do balcão, que resmunga algo incompreensível. Com uma má vontade de causar repugnância, pega o pequeno pedaço de bolo com a mão e arremessa-o no pratinho – um bolo de fubá com cobertura de chocolate, com data de validade bem próxima só pela aparência.

A pequena nordestina agora encara uma garrafa de tubaína e o bolo, deixados pelo garçom sob a mesa. Não falou, mas seus olhos questionaram os pais se poderia começar a comer. A mãe, receosa, remexe a bolsa por completo e retira uma vela, comprada alhures. O pai saca uma caixa de fósforos, mas espera. A filha, com a paciência de sempre, também espera. Como um animalzinho. Todos estão ocupados demais para observá-los, exceto eu.

São três velinhas brancas, pequeninas, colocadas desorganizadamente pela mãe no bolo. E, enquanto ela serve a tubaína, o pai trata de acender as velas com o último palito de fósforo, se observei bem. Ensaiadamente, a menininha repousa o queixo sob as mãos e apaga as chamas com um senhor sopro.

Mecanicamente, põem-se a bater palmas, olhar fixo no bolo, fio de voz para a canção, auxiliada agora, timidamente, pelos pais: “Parabéns pra você, parabéns pra você...” Pouco depois, a mãe retira as velas do bolo e guarda-as na bolsa novamente. A menininha rapidamente pega o bolo com as duas mãos e começa a comê-lo. A mãe a olha com os olhos repletos de encanto – ajeitando-lhe a fita no cabelo e limpando o farelo de bolo que caiu em seu colo. Os olhos do pai passeiam pela padaria e, subitamente, deparam-se com os meus. Titubeia alguns instantes, ameaça abaixar a cabeça, mas mantém-se firme no olhar e, por fim, se abre num sorriso.

Desta maneira eu quereria minha crônica: que fosse sincera como esse sorriso.

Sunday 25 July 2010 3 comments

Mãos dadas




Cotidianamente busco, em cada olhar, uma esperança.
Uma mísera esperança que eleve minha auto-estima, que me faça forte.
Mas, no mar de gente imersa em seus afazeres corriqueiros,
a pressa em concluir tudo parece arrefecer os corações humanos.
Se não há espaço para a poesia, o que se dirá das estrelas?

Cotidianamente,temos nossos lares invadidos por notícias hediondas
que se sucedem
que se excluem
que se digladiam em nossas mentes
que nos fazem prisioneiros de um mundo cada vez mais individualista.
O que temos em mãos?
Apenas o presente. E uma única certeza: temos todo o tempo do mundo...
para apreciar no brilho da estrelas, o silêncio.
O vagaroso silêncio das horas a nos repetir as mesmas histórias.
O vagaroso trabalho da natureza, harmonioso, mas definitivo.
Renascer a cada manhã, experimentar rotas alternativas, viver...

Não. Não nos afastemos. O pior estágio da solidão
é aquele em que estamos diante de milhares de pessoas e nos sentimos desamparados
Mais desamparados que uma nau à deriva.
Vamos de mãos dadas.

Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
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