morar numa casa mais ou menos,
numa rua mais ou menos,
numa cidade mais ou menos
e até ter um governo mais ou menos.
A gente pode
dormir numa cama mais ou menos,
comer feijão mais ou menos,
ter um transporte mais ou menos,
e até ser obrigado a acreditar mais ou menos no futuro.
A gente pode
olhar em volta e sentir que tudo está
mais ou menos.
Tudo bem.
O que a gente não pode
mesmo, nunca, de jeito nenhum,
é amar mais ou menos,
é sonhar mais ou menos,
é ser amigo mais ou menos,
é namorar mais ou menos,
é ter fé mais ou menos,
e acreditar mais ou menos.
Se não a gente corre o risco de se tornar
Uma pessoa mais ou menos". - Chico Xavier
Próximo a minha casa, busco refúgio
em uma padaria para saborear um cappuccino. Como sempre, luto
contra o ato solitário de sentar-me diante do computador e escrever. As
palavras me assustam. Adoraria, só por alguns momentos, tecer com efervescência
à Sabino ou Veríssimo, extraindo do cotidiano quadros e alegorias da essência
humana, com o intuito de descerrar as cortinas que nos impedem de enxergar a
vida com mais humanidade. Algo banal, corriqueiro. Frenética busca que esbarra
em minha completa e total ausência de mim mesmo.
Nem mesmo as crianças que pedem
pastel para um moço bem vestido na barraca da feira logo adiante, nem as
buzinas, freadas, sons de batida de automóveis, xingamentos. Nada me inspira na
busca pelo essencial. E, nesta ausência de ideias, sorvo o cappuccino, mirando
o televisor que transmite um jogo de futebol de dois times inexpressivos da
série B do Brasileirão, enquanto o verso do poeta fixa morada em minha
lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”.
Decididamente, não sou poeta e
fugiram-me todos os assuntos. Percorro, mais uma vez, todo o ambiente com meu
olhar, vasculhando minuciosamente cada fresta de pensamento para compor minha
crônica.
Noto, bem ao fundo da padaria, um
casal de nordestinos que se sentou ainda há pouco, numa das últimas mesas.
Seriedade no olhar, traje humilde, usado somente em ocasiões especiais,
ausência de palavras e gestos. Soma-se a presença de uma menininha de seus
três, quatro anos, fita amarela no cabelo, vestido humildezinho, bem
posicionada à mesa: sequer tem a curiosidade de olhar para o lado ou mesmo de
piscar os olhos. Pai, mãe e filha. Três seres mirrados que formam uma das
células da sociedade preparam-se para um evento que não se restringe somente a
uma simples refeição para acabar-lhes com a fome estampada em seus rostos.
Redobro minha atenção. O pai conta
vagarosamente as moedas que tirara de uma carteira, silenciosamente. Busca com
o olhar o garçom, apontando um pedaço de bolo sob a grossa redoma de vidro. A
mãe mantém-se estática, aguardando com paciência a resposta do garçom. Este,
atentamente, anota o pedido em um bloco de jogo-do-bicho e se afasta para
atendê-los.
Os olhos da mulher brilham, apesar de
insegurança de sua presença naquele local. Ao meu lado, o garçom solicita o
pedido do freguês ao atendente atrás do balcão, que resmunga algo
incompreensível. Com uma má vontade de causar repugnância, pega o pequeno
pedaço de bolo com a mão e arremessa-o no pratinho – um bolo de fubá com
cobertura de chocolate, com data de validade bem próxima só pela aparência.
A pequena nordestina agora encara uma
garrafa de tubaína e o bolo, deixados pelo garçom sob a mesa. Não falou, mas
seus olhos questionaram os pais se poderia começar a comer. A mãe, receosa,
remexe a bolsa por completo e retira uma vela, comprada alhures. O pai saca uma
caixa de fósforos, mas espera. A filha, com a paciência de sempre, também
espera. Como um animalzinho. Todos estão ocupados demais para observá-los,
exceto eu.
São três velinhas brancas,
pequeninas, colocadas desorganizadamente pela mãe no bolo. E, enquanto ela
serve a tubaína, o pai trata de acender as velas com o último palito de
fósforo, se observei bem. Ensaiadamente, a menininha repousa o queixo sob as
mãos e apaga as chamas com um senhor sopro.
Mecanicamente, põem-se a bater
palmas, olhar fixo no bolo, fio de voz para a canção, auxiliada agora,
timidamente, pelos pais: “Parabéns pra você, parabéns pra você...” Pouco
depois, a mãe retira as velas do bolo e guarda-as na bolsa novamente. A
menininha rapidamente pega o bolo com as duas mãos e começa a comê-lo. A mãe a
olha com os olhos repletos de encanto – ajeitando-lhe a fita no cabelo e
limpando o farelo de bolo que caiu em seu colo. Os olhos do pai passeiam pela
padaria e, subitamente, deparam-se com os meus. Titubeia alguns instantes,
ameaça abaixar a cabeça, mas mantém-se firme no olhar e, por fim, se abre num
sorriso.
Desta maneira eu quereria minha
crônica: que fosse sincera como esse sorriso.
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