Friday 18 July 2014 0 comments

O homem que só tinha certezas

Nem o homem feliz de Maiakovsky nem o homem liberto de Paulo Mendes Campos, resolvi imaginar outra improbabilidade. Digamos que aparecesse agora, justo aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, mais exatamente, bem aí na sua frente, um homem que só tivesse certezas.
O homem que só tinha certezas quase nunca usava ponto de interrogação, e em seu vocabulário não constavam as expressões: talvez, quiçá, quem sabe, porventura.
Parece que foi de nascença. Ele já teria vindo ao mundo assim, com todas as certezas junto, pulou a fase dos por quês e nunca soube o que era curiosidade na vida. Na escola, era uma sensação. Mas não ligava muito pra isso não. E cresceu achando muito natural viver derramando afirmações pela boca. Tinha resposta pra tudo, o homem que só tinha certezas, mas o maior orgulho do homem eram as certezas mais duvidosas que ele tinha. A certeza de que o mais fraco ia vencer, de que as coisas iam melhorar, de que o desenganado ainda teria muitos anos pela frente.
A notícia espalhou-se rapidamente. Como ele vivia no meio de pessoas, e pessoas vivem cheias de dúvidas, logo começaram a pedir sua opinião para os mais diversos assuntos, os triviais e os de grande importância, e ele, certo de que podia viver muito bem de suas certezas, virou um consultor. Pendurou em sua porta uma placa onde estava escrito "Consultor de tudo" e o negócio foi crescendo aos pouquinhos. Devido ao boca-a-boca favorável de clientes e a um único anúncio no rádio, passou a atender, sem nenhum exagero, milhares de pessoas por dia, até que limitou o número de consultas diárias para quatrocentos e oitenta, um minuto e meio por pessoa, o que era mais do que suficiente para uma resposta certa desde que a pergunta não fosse muito longa.
Chegava gente do país inteiro e depois de outros continentes, pessoas comuns, pessoas ilustres, todas elas indecisas, mas cada pessoa só tinha direito a uma pergunta por consulta, o que as deixava mais indecisas ainda. Certa vez uma moça chegou na dúvida se devia perguntar primeiro sobre o amor ou o trabalho, no que o homem respondeu, sobre o amor, é claro, senão você não vai conseguir trabalhar direito, e deu por encerrada a consulta. O homem que só tinha certezas aconselhou um garoto tímido a tomar quatro cervejas, encorajou um político receoso a aprovar um projeto esquisitíssimo que se destinava a melhorar a vida dos homens, avisou a uma senhora preocupada com os anos que no caso dela nada melhor do que beijos na boca, desentorpeceu um rapaz doente de amor por uma mulher que gostava de outro, convenceu o ministro da fazenda de que ou o dinheiro era pouco, ou eram muitos os homens, ou ele estava louco, ou alguém tinha se enganado nas contas.
Não demorou muito para se tornar capa de todas as revistas e personagem assíduo dos programas de TV. Para cada pergunta havia uma só resposta certa e era essa que ele dava, invariavelmente, exterminando aos pouquinhos todas as dúvidas que existiam, até que só restou uma dúvida no mundo: será que ele não vai errar nunca? Mas ele nunca errava, e já nem havia mais o que errar, uma vez que não havia mais dúvidas.
Num mundo que só tinha certezas, o homem que só tinha certezas virou apenas mais um homem no mundo. Melhor assim, ele pensava, ou melhor, tinha certeza.
Um dia aconteceu um imprevisto, e o homem que só tinha certezas, quem diria, acordou apaixonado. Para se assegurar de que aquela era a mulher certa para ele, formulou cento e vinte perguntas, que ela respondeu sem vacilar, mandou fazer mapas do céu, exames de sangue, contagem de triglicerídeos, planilhas complicadíssimas e finalmente apresentou a moça à sua mãe e ao seu cachorro. Os dois se amaram noites adentro, foram a Barcelona, tiraram fotos juntos, compraram álbuns, porta-retratos, garfos, facas, um escorredor de pratos, tiveram filhos e tal, e, desde então, por alguma razão desconhecida, o homem que só tinha certezas foi perdendo todas elas, uma por uma. No início ainda tentou disfarçar, por via das dúvidas, quem sabe era um mal passageiro? Mas as dúvidas multiplicavam-se como praga (dúvidas se multiplicam?), espalharam-se pelo mundo, e agora, meu Deus? Deus existe? Existe sim. Ou será que não? Ele não estava bem certo.

 

Adriana Falcão

Monday 7 July 2014 0 comments

Da incrível arte de silenciar em meio às atribulações do cotidiano

“- Atenção senhores passageiros: cuidado com o vão entre o trem e a plataforma”, foi a mensagem que ouvi hoje à tarde uma centena de vezes. Não, não enlouqueci, caros leitores. Apenas realizei um desejo meu: o de sentar em um desses bancos de espera que existem nas estações de trem e apreciar a movimentação das horas, dos trens, dos passageiros, da vida em si.

Diz o poeta que a vida é como uma viagem de trem. Logo quando nascemos, recebemos um bilhete e embarcamos em um dos tantos vagões que existem. Não raro, recebemos o carinho e a proteção daqueles que seguirão o trajeto conosco até o dia do desembarque final. Sim, temos o privilégio de saber que um dia seremos obrigados a desembarcar, diferente de muitos outros seres vivos. E isso faz toda a diferença.
Veio então à tona um dos versos de um famoso poema de Manoel Bandeira: “a vida inteira que poderia ter sido e não foi”. O famoso “se”: “se viajar, vou comprometer todo o meu orçamento”, “se mudar a cor do meu cabelo, muitas pessoas não vão gostar”, “se parar de trabalhar, o que será da minha vida”. Para tudo há um tempo, está assim definido nas Escrituras, uma de minhas citações favoritas: “tempo para nascer e tempo para morrer; tempo para plantar e tempo para colher; tempo para a guerra e tempo para a paz (...)”. Ter o domínio do tempo não é uma tarefa fácil. “É isso ou aquilo: é uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares”, ensina-nos Cecília Meireles.
E assim, seguimos cada um nossas viagens. Apesar de estarmos acompanhados de diversas pessoas que conhecemos no decorrer dos dias, a viagem é sempre individual e solitária. “Cada um é senhor de si próprio, deve depender de si próprio. Deve, portanto, aprender a controlar suas ações.” (Sakyamuni).
Eu escolhi ficar ali, parado, desligando-me do tempo. Queria um momento para refletir sobre erros e acertos. Sobre minhas escolhas, as velhas e as novas. Sobre a minha viagem, essa que Guimarães Rosa costumava chamar de travessia.
Abri um livro e deixei-me levar pela narrativa da personagem principal, Lola, mãe de quatro filhos no impagável “Éramos seis”. Quase no final, ela relata a triste partida de seu filho mais velho, Carlos, vítima de um câncer devastador: “E tudo se precipitou de repente. Foi a torrente que me arrastou ao fundo do abismo; nada pôde impedir. Vi Carlos depois no leito como que sumindo, tão branco, indo embora de uma vez. Clotilde, tia Candoca e a Madre estavam no quarto. O dia estava bonito, nuvens varrendo o céu; eu via uma nesguinha pela janela. Ouvia uma voz gritando, uma voz angustiada, dolorida: "Calucho! Meu Calucho!" Era eu mesma quem gritava.”
 
Não pude prosseguir com a leitura. Por alguns instantes, fechei o livro e os olhos, como se com isso pudesse conter as lágrimas que brotavam aos montes em meus olhos.
Lembrei-me dos entes e amigos que, sem mais nem menos, desembarcaram subitamente, levando consigo um pedaço de mim e deixando comigo a lembrança dos raros momentos de felicidade. Todas ali, reunidas em meu pensamento, um dia estiveram presentes em meu livro, no livro que todas as manhãs teço e desteço, faço e desfaço.
Tornei a abrir o livro, embora a palpitação do coração me orientasse a continuar com ele fechado. “Carlos ainda olhou para mim e sorriu com brandura. Ele me entendeu; ainda tentou falar, mas seus lábios se negaram a pronunciar a palavra. A luz dos seus olhos foi se extinguindo lentamente como a esperança quando morre nos corações; com pena de se apagar. De repente se extinguiu de uma vez; percebi que seus olhos já não viam (...)”. Nunca mais ela o teria nos braços novamente. Não mais poderia escutar as canções que ele, munido de um violão, cantava com sua voz grave e cativante após os jantares. Imperava ali, naquela cena, o silêncio.
Na estação também. O silêncio. Dois trens acabavam de partir. Olhei em torno, para assegurar-me se havia alguém ali próximo com quem pudesse conversar alguma coisa, qualquer coisa que fosse. Noto então a presença de uma senhora de aproximadamente setenta anos, cabelos da cor do tempo, andar fatigado e olhar deveras amoroso. Sentou-se ao meu lado. Antes que eu disse algo, falou convictamente:
“-O céu está sombrio e escuro, cinzento-escuro. O que foi a vida em todos esses anos? Sacrifício e devotamento. É como ver numa tarde assim de chuva, pesada de tristezas. Mas não sei lamentar; se fosse preciso recomeçar novamente, novamente faria minha vida a mesma que foi, de sacrifício e devotamento. Devo ser feliz porque cada filho seguiu o caminho escolhido.”
 
Como podia? Será que por acaso do destino ela lera meu pensamento e vinha ali, segredar-me isso? Quem era aquela senhora que se parecia tanto com a personagem Lola? Todas essas indagações inundavam-me o pensamento, deixando minha mente congestionada. Consegui ouvir, porém, o trem que acabava de encostar-se à plataforma. Olhei para o lado, mas não vi a expressão lívida da senhora que até então me acompanhava.
Ficou apenas ecoando em minha memória a frase: “Enquanto houver esperança, sempre haverá vida. Recomece quantas vezes forem necessárias. O segredo da vida não reside no início nem mesmo no fim, mas no intervalo: o que se faz ou o que se deixa de fazer é o que irá determinar se sua travessia será digna de ser lembrada ou não”.
O céu, como que por mágica, começou a ficar escuro e sombrio às 17 horas, fato bastante incomum. Era o sol despedindo-se antecipadamente por detrás dos arranha-céus. Para amanhã reinar absoluto de novo, trazendo-nos mais uma vez a capacidade de escolher. Ou isto ou aquilo. Embarcar e seguir o fluxo contínuo ou deixar-se ficar à beira da estação.













Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
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