Sunday 24 December 2017 0 comments

Dentro da noite

— Então causou sensação?
—-Tanto mais quanto era inexplicável. Tu amavas a Clotilde, não? Ela, coitadita! parecia louca por ti, e os pais estavam radiantes de alegria. De repente, súbita transformação. Tu desapareces, a família fecha os salões como se estivesse de luto pesado. Clotilde chora... Evidentemente havia um mistério, uma dessas coisas capazes de fazer os espíritos imaginosos arquitetarem dramas horrendos. Por felicidade, o juízo geral é contra o teu procedimento.
— Contra mim?
Podia ser contra a pureza da Clotilde. Graças aos deuses, porém, é contra ti. Eu mesmo concordaria com o Prates que te chama velhaco, se não viesse encontrar o nosso Rodolfo, agora, onze da noite, por tamanha intempérie metido num trem de subúrbio, com o ar desvairado...
— Eu tenho o ar desvairado?
— Absolutamente desvairado.
— Vê-se?
— É claro. Pobre amigo! Então, sofreste muito? Conta lá. Estás pálido, suando apesar da temperatura fria, e com um olhar tão estranho, tão esquisito. Parece que bebeste e que choraste. Conta lá. Nunca pensei encontrar o Rodolfo Queiroz, o mais elegante artista desta terra, nem trem de subúrbio, às onze de uma noite de temporal. É curioso. Ocultas os pesares nas matas suburbanas? Estás a fazer passeios de vício perigoso?
O trem rasgara a treva num silvo alanhante, e de novo cavalava sobre os trilhos. Um sino enorme ia com ele badalando, e pelas portinholas do vagão viam-se, a marginar a estrada, as luzes das casas ainda abertas, os silvedos empapados d’água e a chuva lastimável a tecer o seu infindável véu de lágrimas. Percebi então que o sujeito gordo da banqueta próxima — o que falava mais — dizia para o
outro:
— Mas como tremes, criatura de Deus! Estás doente?
O outro sorriu desanimado.
— Não; estou nervoso, estou com a maldita crise. E como o gordo esperasse:
— Oh! meu caro, o Prates tem razão! E teve razão a família de Clotilde e tens razão tu cujo olhar é de assustada piedade. Sou um miserável desvairado, sou um infame desgraçado.
— Mas que é isto, Rodolfo?
— Que é isto! E’ o fim, meu bom amigo, é o meu fim. Não há quem não tenha o seu vício, a sua tara, a sua brecha. Eu tenho um vício que é positivamente a loucura. Luto, resisto, grito, debato-me, não quero, não quero, mas o vício vem vindo a rir, toma-me a mão, faz-me inconsciente, apodera-se de mim. Estou com a crise. Lembras-te da Jeanne Dambreuil quando se picava com morfina? Lembras-te do João Guedes quando nos convidava para as fumeries de ópio? Sabiam ambos que acabavam a vida e não podiam resistir. Eu quero resistir e não posso. Estás a conversar com um homem que se sente doido.
— Tomas morfina, agora? Foi o desgosto decerto...
O rapaz que tinha o olhar desvairado perscrutou o vagão. Não havia ninguém mais — a não ser eu, e eu dormia profundamente... Ele então aproximou-se do sujeito gordo, numa ânsia de explicações.
— Foi de repente, Justino. Nunca pensei! Eu era um homem regular, de bons instintos, com uma família honesta. Ia casar com a Clotilde, ser de bondade a quem amava perdidamente. E uma noite estávamos no baile das Praxedes, quando a Clotilde apareceu decotada, com os braços nus. Que braços! Eram delicadíssimos, de uma beleza ingênua e comovedora, meio infantil, meio mulher — a beleza dos braços das Oréadas pintadas por Botticeli, misto de castidade mística e de alegria pagã. Tive um estremecimento. Ciúmes? Não. Era um estado que nunca se apossara de mim: a vontade de tê-los só para os meus olhos, de beijá-los, de acariciá-los, mas principalmente de fazê-los sofrer. Fui ao encontro da pobre rapariga fazendo um enorme esforço, porque o meu desejo era agarrar-lhe os braços, sacudi-los, apertá-los com toda a força, fazer-lhes manchas negras, bem negras, feri-los... Por quê? Não sei, nem eu mesmo sei — uma nevrose! Essa noite passei-a numa agitação incrível. Mas contive-me. Contive-me dias, meses, um longo tempo, com pavor do que poderia acontecer. O desejo, porém ficou, cresceu, brotou, arraigou-se na minha pobre alma. No primeiro instante, a minha vontade era bater-lhe com pesos, brutalmente. Agora a grande vontade era de espetá-los, de enterrar-lhes longos alfinetes, de cozê-los devagarinho, a picadas. E junto de Clotilde, por mais compridas que trouxesse as mangas, eu via esses braços nus como na primeira noite, via a sua forma grácil e suave, sentia a finura da pele e imaginava o súbito estremeção quando pudesse enterrar o primeiro alfinete, escolhia posições, compunha o prazer diante daquele susto de carne que havia de sentir.
— Que horror!!!
— Afinal, uma outra vez, encontrei-a na sauterie da viscondessa de Lages, com um vestido em que as mangas eram de gaze. Os seus braços — oh! que braços, Justino, que braços ! — estavam quase nus. Quando Clotilde erguia-os, parecia uma ninfa que fosse se metamorfoseando em anjo. No canto da varanda, entre as roseiras, ela disse-me — “Rodolfo, que olhar o seu. Está zangado?" Não foi possível reter o desejo que me punha a tremer, rangendo os dentes. — “ Oh! não!" fiz. "Estou apenas com vontade de espetar este alfinete no seu braço". Sabes como é pura a Clotilde. A pobrezita olhou-me assustada, pensou, sorriu com tristeza: —“Se não quer que eu mostre os braços, por que não me disse há mais tempo, Rodolfo? Diga, é isso que o faz zangado? “ — “ É , é isso, Clotilde". E rindo — como esse riso devia parecer idiota! — continuei “É preciso pagar ao meu ciúme a sua dívida de sangue. Deixe espetar o alfinete. “ - Está louco, Rodolfo? “ — “ Que tem? “ — “ Vai fazer-me doer". — “Não dói. “ — “ E o sangue? ” —“Beberei essa gota de sangue como a ambrosia do esquecimento". E dei por mim, quase de joelhos, implorando, suplicando, inventando frases, com um gosto de sangue na boca e as frontes a bater, a bater... Clotilde por fim estava atordoada, vencida, não compreendendo bem se devia ou não resistir. Ah! meu caro, as mulheres! Que estranho fundo de bondade, de submissão, de desejo, de dedicação inconsciente tem uma pobre menina! Ao cabo de um certo tempo, ela curvou a cabeça, murmurou num suspiro “Bem, Rodolfo, faça... mas devagar, Rodolfo! Há de doer tanto!" E os seus dois braços tremiam. Tirei da botoeira da casaca um alfinete, e nervoso, nervoso como se fosse amar pela primeira vez, escolhi o lugar, passei a mão, senti a pele macia e enterrei-o. Foi como se fisgasse uma pétala de camélia, mas deu-me um gozo complexo de que participavam todos os meus sentidos. Ela teve um ah! de dor, levou o lenço ao sítio picado, e disse, magoadamente — “ Mau!”
Ah! Justino, não dormi. Deitado, a delícia daquela carne que sofrera por meu desejo, a sensação do aço afundando devagar no braço da minha noiva, dava-me espasmos de horror! Que prazer tremendo!
E apertando os varões da cama, mordendo o travesseiro, eu tinha a certeza de que dentro de mim rebentara a moléstia incurável. Ao mesmo tempo que forçava o pensamento a dizer: "Nunca mais farei essa infâmia!", todos os meus nervos latejavam: "Voltas amanhã; tens que gozar de novo o supremo prazer!" Era o delírio, era a moléstia, era o meu horror...
Houve um silêncio. O trem corria em plena treva, acordando os campos com o desesperado badalar da máquina. O sujeito gordo tirou a carteira e acendeu uma cigarreta.
— Caso muito interessante, Rodolfo. Não há dúvida que é uma degeneração sexual, mas o altruísmo de S. Francisco de Assis também é degeneração e o amor de Santa Teresa não foi outra coisa. Sabes que Rousseau tinha pouco mais ou menos esse mal? És mais um tipo a enriquecer a série enorme dos discípulos do marques de Sade. Um homem de espírito já definiu o sadismo: a depravação intelectual
do assassinato. És um Jack-the-ripper civilizado , contentas-te com enterrar alfinetes nos braços. Não te assustes.
O outro resfolegava, com a cabeça entre as mãos.
— Não rias, Justino. Estás a tecer paradoxos diante de uma criatura já do outro lado da vida normal. É lúgubre.
— Então continuaste?
— Sim, continuei, voltei, imediatamente. No dia seguinte, à noitinha, estava em casa de Clotilde, e com um desejo louco, desvairado. Nós conversávamos na sala de visitas. Os velhos ficavam por ali a montar guarda. Eu e a Clotilde íamos para o fundo, para o sofá. Logo ao entrar tive o instinto de que podia praticar a minha infâmia na penumbra da sala, enquanto o pai conversasse. Estava tão agitado que o velho exclamou: — “ Parece, Rodolfo, que vieste a correr para não perder a festa.”
Eu estava louco, apenas. Não poderás nunca imaginar o caos da minha alma naqueles momentos em que estive a seu lado no sofá, o maelstrom de angústias, de esforços, de desejos, a luta da razão e do mal, o mal que eu senti saltar-me a garganta, tomar-me a mão, ir agir, ir agir... Quando ao cabo de alguns minutos acariciei-lhe na sombra o braço, por cima da manga, numa carícia lenta que subia das
mãos para os ombros, entre os dedos senti que já tinha o alfinete, o alfinete pavoroso. Então fechei os
olhos, encolhi-me, encolhi-me, e finquei.
Ela estremeceu, suspirou. Eu tive logo um relaxamento de nervos, uma doce acalmia. Passara a crise com a satisfação, mas sobre os meus olhos os olhos de Clotilde se fixaram enormes e eu vi que ela compreendia vagamente tudo, que ela descobria o seu infortúnio e a minha infâmia. Como era nobre, porém! Não disse uma palavra. Era a desgraça. Que se havia de fazer?...Então depois, Justino, sabes? foi todo o dia. Não lhe via a carne mas sentia-a marcada, ferida. Cosi-lhe os braços! Por último perguntava: — “Fez sangue, ontem?” E ela pálida e triste, num suspiro de rola: “Fez...” Pobre Clotilde! A que ponto eu chegara, na necessidade de saber se doera bem, se ferira bem, se estragara bem! E no quarto, à noite, vinham-me grandes pavores súbitos ao pensar no casamento porque sabia que se a tivesse toda havia de picar-lhe a carne virginal nos braços, no dorso, nos seios...Justino, que tristeza !...
De novo a voz calou-se. O trem continuava aos solavancos na tempestade, e pareceu-me ouvir o rapaz soluçar. O outro porém estava interessado, e indagou:
— Mas então como te saíste?
— Em um mês ela emagreceu, perdeu as cores. Os seus dois olhos negros ardiam aumentados pelas olheiras roxas. Já não tinha risos. Quando eu chegava, fechava-se no quarto, no desejo de espaçar a hora do tormento. Era a mãe que a ia buscar. “Minha filha, o Rodolfo chegou. Avia-te. “ E lá de dentro: "Já vou, mãe". Que dor eu tinha quando a via aparecer sem uma palavra ! Sentava-se à janela, consertava as flores da jarra, hesitava, até que sem forças vinha tombar a meu lado, no sofá, como esses pobres pássaros que as serpentes fascinam. Afinal, há dois meses, uma criada viu-lhe os braços, deu o alarme. Clotilde foi interrogada, confessou tudo numa onda de soluços. Nessa mesma tarde recebi uma carta seca do velho pai desfazendo o compromisso e falando em crimes que estão com penas no código.
— E fugiste?
— Não fugi; rolei, perdi-me. Nada mais resta do antigo Rodolfo. Sou outro homem, tenho outra alma, outra voz, outras ideias. Assisto-me endoidecer. Perder a Clotilde foi para mim o soçobramento total. Para esquecê-la percorri os lugares de má fama, aluguei por muito dinheiro a dor das mulheres infames, frequentei alcouces. Até aí o meu perfil foi dentro em pouco o terror. As mulheres apontavam-me a sorrir, mas um sorriso de medo, de horror.
A pedir, a rogar um instante de calma eu corria às vezes ruas inteiras da Suburra, numa enxurrada de apodos. Esses entes querem apanhar do amante, sofrem lanhos na fúria do amor, mas tremem de nojo assustado diante do ser que pausadamente e sem cólera lhes enterra alfinetes. Eu era ridículo e pavoroso. Dei então para agir livremente, ao acaso, sem dar satisfações, nas desconhecidas. Gozo agora nos tramways , nos music-halls, nos comboios dos caminhos de ferro, nas ruas. É muito mais simples. Aproximo-me, tomo posição, enterro sem dó o alfinete. Elas gritam, às vezes. Eu peço desculpa.
Uma já me esbofeteou. Mas ninguém descobre se foi proposital. Gosto mais das magras, as que parecem doentes.
A voz do desvairado tornara-se metálica, outra vez. De novo porém a envolveu um tremor assustado.
— Quando te encontrei, Justino, vinha a acompanhar uma rapariga magrinha. Estou com a crise, estou... O teu pobre amigo está perdido, o teu pobre amigo vai ficar louco...
De repente, num entrechocar de todos os vagões, o comboio parou. Estávamos numa estação suja, iluminada vagamente. Dois ou três empregados apareceram com lanternas rubras e verdes. Apitos trilaram. Nesse momento, uma menina loura com um guarda-chuva a pingar, apareceu, espiou o vagão, caminhou para outro, entrou. O rapaz pôs-se de pé logo.
— Adeus.
— Saltas aqui?
— Salto.
— Mas que vais fazer?
— Não posso, deixa-me! Adeus!
Saiu, hesitou um instante. De novo os apitos trilaram. O trem teve um arranco. O rapaz apertou a cabeça com as duas mãos como se quisesse reter um irresistível impulso. Houve um silvo. A enorme massa resfolegando rangeu por sobre os trilhos. O rapaz olhou para os lados, consultou a botoeira, correu para o vagão onde desaparecera a menina loura. Logo o comboio partiu. O homem gordo recolheu a sua curiosidade, mais pálido, fazendo subir a vidraça da janela. Depois estendeu-se na banqueta. Eu estava incapaz de erguer-me, imaginando ouvir a cada instante um grito doloroso no outro vagão, em que estava a menina loura. Mas o comboio rasgara a treva com outro silvo, cavalgando os trilhos vertiginosamente. Através das vidraças molhadas viam-se numa correria fantástica as luzes das casas ainda abertas, as sebes empapadas d’água sob a chuva torrencial. E à frente, no alto da locomotiva, como o rebate do desespero, o enorme sino reboava, acordando a noite, enchendo a treva de um clamor de desgraça e de delírio.
Tuesday 19 December 2017 0 comments

Guia para solteiros

A louça acumulada na pia, as compras a serem realizadas e as contas a serem pagas contrariam os versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, que diz que “suave é viver só”. Viver só não é fácil e até hoje não encontrei uma escola onde pudesse aprender tudo o que é necessário para administrar um lar. Cada dia é um aprendizado novo que, somado aos já estabelecidos, garantem certa estabilidade. Até a próxima tempestade.

Variados são os motivos que levam uma pessoa a morar sozinha: escolha própria para encarar os desafios; mudança de cidade para um curso em uma faculdade ou um novo emprego; uma separação ou, na pior situação, a morte dos pais. Independente do motivo que faz com que uma pessoa escolha morar sozinho, o primeiro e mais importante passo para se estabelecer é se adequar às condições financeiras e, com o tempo, definir metas a serem alcançadas. Ou seja, é preciso amadurecer ou amadurecer para a vida real.

Há dez anos fiz a escolha de alugar um cômodo próximo ao local onde trabalhava e, com isso, economizar o dinheiro da passagem para adquirir móveis, roupas de cama, mesa e banho, utensílios domésticos básicos e outros itens essenciais. Apelidei o cômodo, que tinha um banheiro interno, de “caverna”, com todo respeito à proprietária do imóvel. Mas foi ali que tive minha primeira experiência com o isolamento e a responsabilidade, características que permeiam a pessoa que adota essa opção de vida. Hoje, um pouco mais confortável, relembro de todo esse caminho percorrido e rio sozinho no meio da rua. Alguns olham e acham que sou louco.

Às vezes, alguns alunos me procuram e dizem que desejam morar sozinhos. Prontamente eu respondo: “Prudência! Avalie todas as possibilidades antes de se aventurar por esse caminho”. Muitos desistem, é óbvio. Outros, no entanto, desafiam o perigo e colhem bons frutos dessa experiência. Semanas atrás li um post de um ex-aluno relatando a saga, com o qual dialogo em minha breve crônica.

“Você varre a casa num dia e no outro parece que 20 pessoas chegadas do deserto ficaram rolando no chão durante três horas...porque não há outra explicação pro aparecimento dessa quantidade de poeira”. Não mesmo. Mesmo ao mantermos as janelas fechadas, colocarmos um capacho na porta de entrada, passarmos pano todo final de semana, a poeira surge do nada. Fazer vista grossa é pior: na próxima consulta com seu médico, ele certamente irá alertá-lo de que sua rinite é oriunda do acúmulo de poeira, fungos e ácaros em móveis, no tapete, no lençol de cama.

“Você acaba de lavar a louça, toma uma aguinha e, do nada, Tchantchantantan...aparecem 30 copos, 27 pratos e 17 tupperware sujos na pia”. É batata. Por mais disciplinada que a pessoa seja, é inevitável o acúmulo de louça na pia. Se essa pessoa gosta de frituras, aí a coisa complica. Lavar e arear a panela, limpar o fogão e guardar toda a louça demandará um tempo generoso para os procrastinadores. Não vou nem mencionar quando isso ocorre na época do inverno.

“Você segue as receitas da internet pra fazer aquele pavê lindo do tutorial. Quando pronto, fica parecendo um bando de meia suja”. Não me arrisco. Prefiro ficar no básico pra não sofrer com os resultados. Às vezes me arrependo, pois “errando é que se aprende”, nos ensina o velho chavão. Mas a fadiga de comer um mesmo prato por três, quatro dias seguidos, me desencoraja a sonhar um dia em me candidatar ao Masterchef. Mas garanto: o feijão suculento, o arroz bem solto e as saladas que invento, divinas, garantem uma refeição leve e agradável de ser digerida.

“A comida ruim que você faz: ou você come ou morre”. Confesso que nos primeiros dias, a experiência com a cozinha não foi das melhores. O arroz “católico” grudava no fundo, o feijão ou ficava duro ou passava do ponto. Mistura? Ovo. Sem tempo para cozinhar, comi tanto ovo que, segundo as teorias científicas de algumas pessoas, deveria estar com o colesterol bem elevado. Não morri e não tive colesterol. Mas aprendi a preparar alguns cozidos que me salvaram da mesmice.

“Você descobre que os produtos de limpeza custam mais que um coração no mercado negro (R$ 30,00  UM POTINHO DE VANISH, ISSO NÃO EXISTE”. É tudo muito caro. De acordo com o Dieese, o preço médio da cesta básica em abril de 2017 no estado de São Paulo foi de R$ 446,00, sem o Vanish, é claro. Para se ter uma ideia, segundo o mesmo órgão, “em abril de 2017, o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria equivaler a R$ 3.899,66”. O gasto com a cesta básica equivale a 53% do orçamento, baseado no salário mínimo. Com as demais contas, o salário só passa pela conta bancária.

É preciso ser mágico, equilibrista, economista, caçador de promoção. Imprescindível: é preciso pensar bem antes de comprar algo para desperdiçar depois. Não raro ouço os ensinamentos da avó: “coloque no prato apenas o que vai comer. Não tem precisão agradar os olhos e desrespeitar o estômago”.

“As roupas sujas se multiplicam mais rápido que a família Catra”. Outra verdade indubitável. Por mais higiênica que seja uma pessoa, ao término de uma semana o balde com as roupas sujas está transbordando. Não tem como fugir. “Lava-me ou te devoro”, é o enigma a ser decifrado. Talvez seja meu maior defeito, algo ainda a ser aprendido: não sei lavar roupas. A última experiência não foi muito agradável e consegui tingir de azul duas camisas brancas. Desisti. O preço de roupas novas compensa, no meu caso, pagar para lavar fora.

“Você conversa com o William Bonner”. Não é fácil. Mesmo com a internet, whatsapp e todos os aparelhos tecnológicos, nada substitui a presença humana. Como lidar com a solidão? Talvez ler Nietzsche console um pouco: “Sobre a educação — Paulatinamente esclareceu-se, para mim, a mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação: ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina — a suportar a solidão”. “A solidão é fera. A solidão devora. É amiga das horas, é Prima-irmã do tempo e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração. A solidão dos astros. A solidão da lua. A solidão da noite. A solidão da rua”. Ah, Alceu Valença. Obrigado pela canção.

Com esse pensamento, Nietzsche quer revelar “como um dos ensinamentos do espírito livre é a solidão, primeiramente porque ele atingiu tal nível de distinção que poucos podem desfrutar de sua companhia, mas também porque, acima de tudo, aprendeu a amar sua própria companhia, em vez de temê-la. Quando está consigo, sente-se em casa, onde quer que esteja”. Quem nunca leu, deve ler Guimarães Rosa, quando afirma que “Viver é muito perigoso. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difí¬cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”.

“As pessoas ficam ‘uhhh, nossa! Morar sozinho deve ser maravilhoso! Olha, não é não”. Em meio às tempestades e bonanças, cada um forma sua opinião ao longo do tempo. Digo, porém, que não é fácil. É uma batalha diária com você mesmo (lembrar de tirar o lixo, verificar se não deixou o registro do gás ligado, se as torneiras estão bem fechadas, se todos os alimentos foram guardados na geladeira, se as roupas sujas foram colocadas em seu devido lugar, se as contas estão devidamente pagas, se está faltando alguma coisa na despensa, se há papel higiênico suficiente, dentre outras coisas) e com a sociedade (você não vai se casar, precisa de uma mulher para ajudar nas coisas em casa). Não se casa com uma mulher para ter uma doméstica disponível, tampouco se casa com a mãe. Os anos morando sozinho me ensinaram a principal lição: o homem precisa se conscientizar de sua importância para a manutenção do lar e aprender a fazer de tudo um pouco: “lavar, passar, cozinhar, fazer compras não faz o saco cair”, dizia minha mãe.

Morar só é, acima de tudo, um exercício diário de nossa morada para a pessoa amada que um dia há de chegar e preencher os vazios dos cômodos com sua alegria, com seus ensinamentos e com sua forma de enxergar o mundo. Mas esse é um assunto para outra crônica, a ser escrita em breve.

Para quem deseja mais informações sobre morar sozinho, algumas dicas:
https://papodehomem.com.br/o-que-ninguem-conta-sobre-morar-sozinho/
http://financasfemininas.uol.com.br/vai-morar-sozinha-saiba-como-montar-um-orcamento/
http://mdemulher.abril.com.br/estilo-de-vida/32-coisas-que-voce-precisa-saber-antes-de-morar-sozinha/
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Bodas de barro

Hoje eu acordei mais cedo do que deveria, pois seria nosso aniversário de casamento, amor.
Completaríamos oito anos juntos.
Percorro os cômodos, vasculhando tudo o que foi ingrediente para o que chamávamos de “nosso lar” e noto
que
tudo
está
exatamente
do mesmo jeito ao dia anterior da sua despedida:
um velho abajur de mesa esmaltado sob um criado mudo, que de tão mudo,
assistiu a toda nossa intimidade calado, sem nos recriminar;
um porta-retratos de tamanho considerável com a imagem de um abraço nosso
sob o cenário de um lindo pôr do sol à beira mar;
um espelho oval em que todas as manhãs percebo os imensos sulcos que inevitavelmente se multiplicaram em meu rosto somente nesse último ano.
Não sei como suportei viver sem os braços fortes a me abraçarem
e suas mãos hábeis que me acariciavam por inteira,
fazendo-me estremecer dos pés à cabeça...
Não sei o que fiz com o café,
Ah, o café que você saboreava enquanto me falava sobre seus planos,
ousados planos que ainda hoje se fazem presentes em minhas retinas:
Uma viagem ao interior do interior,
ao mais pacato dos recantos, 
lugar onde nunca ousamos ir (por medo ou receio do abandono).
E, dizendo essas tolices, seus olhos brilhavam e tragavam minha juventude para dentro de ti, convidando-me ao delírio das horas de descuido,
inexoráveis horas que o tempo insiste em devorar segundo a segundo,
Minuto a minuto,
Num ritmo lento-saboroso, mas ao mesmo tempo atroz.
Levanto e me dirijo ao banheiro onde tantas vezes eu chorei de alegria
por ter finalmente encontrado a felicidade na segurança do seu abraço.
O banho revigora minhas energias,
sinto-me renascida para o mundo-mundo, eterna morada dessas almas errantes.
Coloco aquele vistoso vestido longo
de estampa floral,
presente que você me deu em nosso último aniversário de casamento.
Gosto de me admirar defronte ao espelho oval,
contemplando meus ombros desnudos e
de como você os acariciava sempre que tinha oportunidade,
sussurrando em meu ouvido “segredos de liquidificador”.
Eu, cheia de vaidade,
Deixava-me levar nesse doce embalo
valsando
rodopiando no ar
feito bailarina!
Lembra, amor? Das danças?
Das incontáveis danças em que, cúmplices,
nos entregávamos  um ao outro,
como se nossas almas após séculos e séculos distantes,
aproveitassem cada instante para se encontrar onde a mente de muitos não conseguem chegar?
Exaurido, você sempre me pedia uma trégua para respirar um ar
e fumar um cigarro.
Cada vez que saía pra respirar, esticava o tempo.
De propósito.
Como se evitasse a presença do meu corpo em seus braços...
Soube, tempos depois, que não haveria mais dança alguma em nossas vidas.
Deus, como esquecer aquele dia, aquele fatídico dia em que me presenteou com um vinil do Chico Buarque...
Não há nenhuma vitrola aqui perto,
Mas dentro a canção continua rasgando-me por inteiro..
“- Quando você me deixou, meu bem/
me disse pra ser feliz, e passar bem/
quis morrer de ciúmes, quase enlouqueci/
mas depois como era de costume, obedeci...”
Mal sabia que eu seria a protagonista desses versos por seis longos meses.
No dia de sua despedida,
não houve briga, não houve discussão, não houve nada.
Entre mim e ti, um abismo se abriu, onde eu mergulhei fundo e quase não voltei.
A mala, os olhos úmidos, a respiração ofegante – todas as palavras foram suprimidas do meu dicionário.
Alguns porquês, por mais necessárias que sejam as explicações,
merecem a paga do silêncio.
O tempo, ainda que devagar, encarrega-se da missão de transformar tudo em tempo.
As lembranças transformam-se em tempo.
As conversas francas, os beijos afetuosos, as intimidades de casal:
tudo se transforma em tempo.
Tempo que nos traga ou tempo que nos liberta...
Hoje, dia em que completaríamos oito anos, outros versos da canção então encontram minha voz...
“quando você me quiser rever/
já vai me encontrar refeita, pode crer/
olhos nos olhos, quero ver o que você faz/
ao sentir que sem você eu passo bem demais/
E que venho até remoçando/
me pego cantando/
sem mas nem porque..”
Bebo um a um esses últimos versos e ergo a cabeça,
descerro as cortinas, abro bem as janelas
e sorvo o ar da manhã como quem estivesse há muito tempo presa em cárcere privado.
Borboletas invadem meu estômago.
É hora de vencer a resistência dos dias
e voar.
A casa estará sempre aberta, amor.
Mas o coração,
Ah, o coração já não te pertence mais.

Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
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