Friday 19 January 2018 1 comments

Passeio noturno–parte I

Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa-de-cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrafônica do quarto do meu filho. “Você não vai largar essa mala?” Perguntou minha mulher, “tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar”.

Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. “Você não para de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa”, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, “já posso mandar servir o jantar?”

A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescidos, eu e a minha mulher estávamos gordos. “É aquele vinho que você gosta”, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta.

“Vamos dar uma volta de carro?”, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. “Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites", também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais”, minha mulher respondeu.

Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu carro. Tirei o carro dos dois, botei na rua, tirei o meu e botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os parachoques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico.

Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na Avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher?, realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mail fácil.

Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som das borrachas dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em onze segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de vermelho, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio.

Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos paralamas, os parachoques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas.

A família estava vendo televisão. “Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?”, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. “Vou dormir, boa noite para todos”, respondi, “amanhã vou ter um dia terrível na companhia”.

Rubem Fonseca

Wednesday 10 January 2018 0 comments

Sobre a escrita

Meu Deus do céu, não tenho nada a dizer. O som de minha máquina é macio.

Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade. A palavra é tão forte que atravessa a barreira do som. Cada palavra é uma ideia. Cada palavra materializa o espírito. Quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento.

Devemos modelar nossas palavras até se tornarem o mais fino invólucro dos nossos pensamentos. Sempre achei que o traço de um escultor é identificável por um extrema simplicidade de linhas. Todas as palavras que digo – é por esconderem outras palavras.

Qual é mesmo a palavra secreta? Não sei é porque a ouso? Não sei porque não ouso dizê-la? Sinto que existe uma palavra, talvez unicamente uma, que não pode e não deve ser pronunciada. Parece-me que todo o resto não é proibido. Mas acontece que eu quero é exatamente me unir a essa palavra proibida. Ou será? Se eu encontrar essa palavra, só a direi em boca fechada, para mim mesma, senão corro o risco de virar alma perdida por toda a eternidade. Os que inventaram o Velho Testamento sabiam que existia uma fruta proibida. As palavras é que me impedem de dizer a verdade.

Simplesmente não há palavras.

O que não sei dizer é mais importante do que o que eu digo. Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal, e mineral e vegetal também. Sim, mas é a sorte às vezes.

Sempre quis atingir através da palavra alguma coisa que fosse ao mesmo tempo sem moeda e que fosse e transmitisse tranquilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas coisas. Cada vez mais eu escrevo com menos palavras. Meu livro melhor acontecerá quando eu de todo não escrever. Eu tenho uma falta de assunto essencial. Todo homem tem sina obscura de pensamento que pode ser o de um crepúsculo e pode ser uma aurora.

Simplesmente as palavras do homem.


Texto extraído do site http://contobrasileiro.com.br/sobre-a-escrita-conto-de-clarice-lispector/ 

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Miss Algrave

Ela era sujeita a julgamento. Por isso não contou nada a ninguém. Se contasse, não acreditariam porque não acreditavam na realidade. Mas ela que morava em Londres, onde os fantasmas existem nos becos escuros, sabia da verdade.

Seu dia, Sexta-feira, fora igual aos outros. Só aconteceu sábado à noite. Mas na Sexta fez tudo igual como sempre. Embora a atormentasse uma lembrança horrível: quando era pequena, com uns sete anos de idade, brincava de marido e mulher com seu primo Jack, na cama grande da vovó. E ambos faziam de tudo para Ter filhinhos sem conseguir. Nunca mais vira Jack nem queria vê-lo. Se era culpada, ele também o era.

Solteira, é claro, virgem, é claro. Morava sozinha numa cobertura em Soho. Nesse dia tinha feito suas compras de comida: legumes e frutas. Porque comer carne ela considerava pecado.

Quando passava pelo Picadilly Circle e via as mulheres esperando homens nas esquinas, só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era demais para se suportar. E aquela estátua de Eros, ali, indecente.

Foi depois do almoço ao trabalho: era datilógrafa perfeita. Seu chefe nunca olhava para ela e tratava-a felizmente com respeito chamando-a de Miss Algrave. Seu primeiro nome era Ruth. E descendia de irlandeses. Era ruiva, usava cabelos enrolados na nuca em coque severo. Tinha muitas sardas e pele tão clara e fina que parecia uma seda branca. Os cílios também eram ruivos. Era uma mulher bonita.

Orgulhava-se muito do seu físico: cheia de corpo e alta. Mas nunca ninguém havia tocado nos seus seios.

Costumava jantar num restaurante barato em Soho mesmo. Comia camarão com molho de tomate. E nunca entrara num pub: nauseava-a o cheiro do álcool, quando passava por um. Sentia-se ofendida pela humanidade.

Cultivava gerânios vermelhos que eram uma glória na primavera. Seu pai era pastor protestante e a mãe ainda morava em Dublin com o filho casado. Seu irmão era casado com uma verdadeira cadela chamada Tootzi.

De vez em quando Miss Algrave escrevia uma carta de protesto para o Time. E eles publicavam. Via com muito gosto o seu nome: sincerely Ruth Algrave.

Tomava banho só uma vez por semana, no Sábado. Para não ver o seu corpo nu, não tirava nem as calcinhas nem o sutiã.

No dia em que aconteceu era Sábado e não tinha portanto trabalho. Acordou cedo e tomou chá de jasmim. Depois rezou. Depois saiu para tomar ar.

Perto do Savoy Hotel quase foi atropelada. Se isso acontecesse e ela morresse teria sido horrível porque nada lhe aconteceria de noite.

Foi ao ensaio do canto coral. Tinha voz maviosa. Sim, era uma pessoa privilegiada.

Depois foi almoçar e permitiu-se comer camarão: estava tão bom que até parecia pecado.Então dirigiu-se ao Hyde Park e sentou-se na grama. Levara a Bíblia para ler. Mas - que Deus a perdoasse – o sol estava tão guerrilheiro, tão bom tão quente, que, não leu nada, ficou só sentada no chão sem coragem de se deitar. Procurou não olhar os casais que se beijavam e se acariciavam sem a menor vergonha.

Depois foi para casa, regou as begônias e tomou banho. Então visitou Mrs. Cabot que tinha noventa e sete anos. Levou-lhe um pedaço de bolo com passas e tomaram chá. Miss Algrave sentia-se muito feliz, embora...Bem, embora.

Às sete horas voltou para casa. Nada tinha a fazer. Então tricotou uma suéter para o inverno. De cor esplendorosa: amarela como o sol.

Antes de dormir tomou mais chá de jasmim com biscoitos, escovou os dentes, mudou de roupa e meteu-se na cama. Suas cortinas de gaze ela mesma fizera e pendurara.

Era maio. As cortinas se balançavam à brisa dessa noite tão singular. Singular por quê? Não sabia.

Leu um pouco o jornal da manhã e fechou a luz da cabeceira. Pela janela aberta via o luar. Era noite de lua cheia.

Suspirou muito porque era difícil viver só. A solidão a esmagava. Terrível não ter uma só pessoa para conversar. Era a criatura mais solitária que conhecia. Até Mrs. Cabot tinha um gato. Ruth Algrave não tinha bicho nenhum: eram bestiais demais para o seu gosto. Nem tinha televisão. Por dois motivos: faltava-lhe dinheiro e não queria ficar vendo as imoralidades que apareciam na . Na televisão de Mrs. Cabot vira um homem beijando uma mulher na boca. E isso sem falar no perigo da transmissão de micróbios. Ah, se pudesse escreveria todos os dias uma carta de protesto para o Time. Mas não adiantava protestar, ao que parecia. A falta de vergonha estava no ar. Até já vira um cachorro com uma cadela. Ficou impressionada. Mas se assim Deus queria, que então assim fosse. Mas ninguém a tocaria jamais, pensou. Ficava curtindo a solidão.

Até as crianças eram imorais. Evitava-as. E lamentava muito Ter nascido da incontinência de seu pai e de sua mãe. Sentia pudor deles não terem tido pudor.

Como deixava arroz cru na janela, os pombos vinham visitá-la. Às vezes entravam-lhe no quarto. Eram enviados por Deus. Tão inocentes. Arrulhando. Mas era meio imoral o arrulho deles, embora menos do que ver mulher quase nua na televisão. Ia amanhã sem falta escrever uma carta protestando contra os maus costumes daquela maldita cidade que era Londres. Chegara uma vez a ver uma fila de viciados junto de uma farmácia, esperando a vez de tomarem uma aplicação. Como é que a Rainha permitia? Mistério. Escreveria mais uma carta denunciando a própria Rainha. Escrevia bem, sem erros de gramática e batia as cartas na máquina do escritório quando tinha um instante de folga. Mr. Clairson, seu chefe, elogiava muito as cartas publicadas. Até dissera que ela poderia um dia vir a ser escritora. Ficara orgulhosa e agradecera muito.

Estava assim deitada na cama com a sua solidão. O embora.

Foi então que aconteceu.Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo. Falou bem alto:

- Quem é você?

E a resposta veio em forma de vento:

- Eu sou um eu.

- Quem é você? Perguntou trêmula.

- Vim de Saturno para amar você.

- Mas eu não estou vendo ninguém! Gritou.

- O que importa é que você está me sentindo.

E sentia mesmo. Teve um frisson eletrônico.

- Como é que você se chama? Perguntou com medo.

- Pouco importa.

- Mas quero chamar seu nome!

- Chame-me de Ixtlan.

Eles se entendiam em sânscrito. Seu contato era frio como o de uma lagartixa, dava-lhe calafrios. Ixtlan tinha sobre a cabeça uma coroa de cobras entrelaçadas, mansas pelo terror de poder morrer. O manto que cobria o seu corpo era da mais sofrida cor roxa, era ouro mau e púrpura coagulada.

Ele disse:

- Tire a roupa.

Ela tirou a camisola. A lua estava enorme dentro do quarto. Ixtlan era branco e pequeno. Deitou-se ao seu lado na cama de ferro. E passou a mão pelos seus seios. Rosas negras.

Ela nunca tinha sentido o que sentiu. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado.

Começou a suspirar e disse para Ixtlan:

- Eu te amo, meu amor! Meu grande amor!

E – é, sim. Aconteceu. Ela queria que não acabasse nunca. Como era bom, meu Deus. Tinha vontade de mais , mais e mais.

Ela pensava: aceitai-me! Ou então: “Eu me vos oferto.” Era o domínio do “aqui e agora”.

Perguntou-lhe: quando é que você volta?

Ixtlan respondeu:

- Na próxima lua cheia.

- Mas eu não posso esperar tanto!

- É o jeito, disse ele até friamente.

- Vou ficar esperando bebê?

- Não.

- Mas vou morrer de saudade de você! Como é que eu faço?

- Use-se.

Ele se levantou, beijou-a castamente na testa. E saiu pela janela.

Começou a chorar baixinho. Parecia um triste violino sem arco. A prova de que tudo acontecera mesmo era o lençol manchado de sangue. Guardou-o sem lavá-lo e poderia mostrá-lo a quem não acreditasse nela.

Viu a madrugada nascer toda cor-de-rosa. No fog os primeiros passarinhos começaram a pipilar com doçura, ainda sem alvoroço.

Deus iluminava seu corpo.

Mas, como uma baronesa Von Blich, nostalgicamente recostada em seu dossel de cetim de seu leito, fingiu tocar a campainha para chamar o mordomo que lhe traria café quente, forte, forte.

Ela o amava e ia esperar ardentemente pela nova lua cheia. Não quis tomar banho para não tirar de si o gosto de Ixtlan. Com ele não fora pecado e sim uma delícia. Não queria mais escrever nenhuma carta de protesto: não protestava mais.

E não foi à igreja. Era mulher realizada. Tinha marido.

Então no Domingo, na hora do almoço, comeu filet mignon com purê de batatas. A carne sangrenta era ótima. E tomou vinho tinto italiano. Era mesmo privilegiada. Fora escolhida por um ser de Saturno.

Tinha lhe perguntado por que a havia escolhido. Ele dissera que era por ela ser ruiva e virgem. Sentia-se bestial. Não tinha mais nojo dos bichos. Eles que se amassem, era a melhor coisa do mundo. E ela esperaria por Ixtlan. Ele voltaria: eu sei, eu sei, eu sei, pensava ela. Também não tinha mais repulsa pelos casais do Hyde Park. Sabia como eles se sentiam.

Como era bom viver. Como era bom comer carne sangrenta. Como era bom tomar vinho italiano bem adstringente, meio amargando e restringindo a língua.

Era agora imprópria para menores de dezoito anos. E se deleitava, babava-se de gosto nisso.

Como era Domingo, foi ao canto coral. Cantou melhor do que nunca e não se surpreendeu quando a escolheram para solista. Cantou a sua aleluia. Assim: Aleluia! Aleluia! Aleluia!

Depois foi ao Hyde Park e deitou-se na grama quente, abriu um pouco as pernas para o sol entrar. Ser mulher era uma coisa soberba. Só quem era mulher sabia. Mas pensou: será que vou Ter que pagar um preço muito caro pela minha felicidade? Não se incomodava. Pagaria tudo que tivesse de pagar. Sempre pagara e sempre fora infeliz. E agora acabara-se a infelicidade. Ixtlan! Volte logo! Não posso mais esperar! Venha! Venha! Venha!

Pensou: será que ele gostara de mim porque eu sou um pouco estrábica? Na próxima lua cheia perguntaria a ele. Se fosse por isso, não tinha dúvida: forçaria a mão e se tornaria completamente vesga. Ixtlan, tudo o que você quiser que eu faça, eu faço. Só que morria de saudade. Volte, my love.

Sim. Mas fez uma coisa que era traição. Ixtlan a compreenderia e perdoaria. Afinal de contas, a pessoa tinha que dar um jeito, não tinha?

Foi o seguinte: não aguentando mais, encaminhou-se para o Picadilly Circle e achegou-se a um homem cabeludo. Levou-o ao seu quarto. Disse-lhe que não precisava pagar. Mas ele fez questão e antes de ir embora deixou na mesa-de-cabeceira uma libra inteira! Bem que estava precisando de dinheiro. Ficou furiosa, porém, quando ele não quis acreditar na sua história. Mostrou-lhe, quase até o seu nariz, o lençol manchado de sangue. Ele riu-se dela.

Na Segunda-feira de manhã resolveu-se: não ia mais trabalhar como datilógrafa tinha outros dons. Mr. Clairson que se danasse. Ia era ficar mesmo nas ruas e levar homens paro o quarto. Como era boa de cama , pagar-lhe-iam muito bem. Poderia beber vinho italiano todos os dias. Tinha vontade de comprara um vestido bem vermelho com o dinheiro que o cabeludo lhe deixara. Soltara os cabelos bastos que eram uma beleza de ruivos. Ela parecia um uivo.

Aprendera que valia muito. Se Mr. Clairson, o sonso, quisesse que ela trabalhasse para ele, teria que ser de outro bom modo.

Antes compraria o vestido vermelho decotado e depois iria ao escritório chegando de propósito, pela primeira vez na vida, bem atrasada. E falaria assim com o chefe:

- Chega de datilografia! Você não me venha com uma de sonso! Quer saber de uma coisa? Deite-se comigo na cama, seu desgraçado! E tem mais: me pague um salário alto por mês, seu sovina!

Tinha certeza que ele aceitaria. Era casado com uma mulher pálida e insignificante, a Joan, e tinha uma filha anêmica, a Lucy. Vai é se deliciar comigo, o filho de uma cadela.

E quando chegasse a lua cheia - tomaria um banho purificador de todos os homens para estar pronta para o festim com Ixtlan.

Monday 8 January 2018 0 comments

O príncipe sapo

À memória de Carmen da Silva

“Numa tarde de novembro de 1966 eu estava em meu quarto no IPA, internato em Porto Alegre, lendo Graciliano Ramos, quando vieram trazer um envelope grande chegado de São Paulo. Era um exemplar do revista Claudia com este conto publicado e uma carta de Carmen da Silva. Há quase um ano, eu enviara o texto a ela pedindo apreciação, e não recebera resposta. A carta explicava: Carmen queria me proporcionar a surpresa da publicação, a primeira. Foi naquele momento que me tornei definitivamente escritor. Exceto por algumas palavras e parágrafos, não mudei mais nado nesta história. Tentar “melhorá- la”seria atraiçoar a inocência dos 18 anos que eu tive.”

Bonita mesmo ela nunca foi, sobre isso todos sempre estiveram de acordo. Ainda mais agora, já quarentona, os cabelos muito finos e lisos eternamente presos num coque sem graça, os olhos parados numa expressão estranha, misto de ironia e tristeza. Mas não se pode negar que tinha algo diferente — alguma coisa assim que transcendia o corpo e ficava pairando ao seu redor como... como uma névoa vaga de manhã de outono. (Ia dizer auréola, mas essa palavra  lembra santa e isso eu garanto que ela nunca foi.) O fato é que ela possuía uma graça especial, talvez o modo como se debruçava à janela, ou mesmo o jeito oblíquo de sorrir apertando os lábios, como se temesse revelar no sorriso todo o seu mundo interior.
Teresa era seu nome. Nome comum que não lembra nada nem ninguém — a não ser as duas santas, a Teresinha de Jesus na música infantil e a Teresa Cristina imperatriz, com as quais aliás nem um pouco ela se parecia. Pois Teresa vinha de uma família muito numerosa. Onze irmãs. Todas com T de inicial no nome também. Teresa, sorte dela, foi das mais velhas, pois a décima segunda, esgotado o reservatório de nomes, foi batizada como Telêmaca. Mesmo essa conseguiu casar. Todas as outras conseguiram, menos Teresa. Foram-se indo aos poucos todos aqueles tês, como a água numa banheira vai sumindo, sumindo, de repente a gente depara com a banheira vazia e pergunta: “Ué, cadê a água?” Foi isso que aconteceu com Teresa. Madrinha, testemunha ou aia de todos os casamentos. Sempre sorridente, feliz com a felicidade das outras, escondendo uma ponta, só uma pontinha, de inveja boa. Os parentes já se olhando de esguelha, trocando sorrisos maliciosos, fazendo apostas ferinas: “Será que esta encalha?” As irmãs casando e Teresa sobrando, o corpo fanando, a carteira e as luvas puindo de tanto casamento. E um misto de amargura e expectativa se acumulando num fundo de alma.

“Minha vez também há de chegar”, pensava, comparando-se às dez irmãs. E tirava, honestamente, um saldo a seu favor: era mais inteligente, mais desembaraçada, mais elegante. Mas ia sobrando. E a esperança — a esperança ameaçando tomar-se real no primo Gonçalo, de olhos verdes, verdes, tocador exímio de violão, seresteiro incorrigível, partido visado pelas moçoilas românticas e temido pelos papais, aquela esperança apequenando mais e mais no coração de Teresa. Foi-se de vez no nono casamento: Tanira e Gonçalo confirmam. Teresa, madrinha mais uma vez. Sorriso desta vez como pintado no rosto onde os olhos mostraram, pela primeira vez, aquele misto de ironia e tristeza. Depois a festa, os doces, as danças, os pares rodopiando, o violão, os olhos — meu Deus, tão doidamente verdes! — de Gonçalo postos nos olhos sem graça da irmã. Teresa enfiada num canto, falando de pontos de crochê para dona Anaurelina, buço cerrado, seios fartos, mãe de Gonçalo rodopiando na valsa e olhos (ainda, Deus meu!) postos nos olhos de Tanira.

À noite, sozinha na cama, amargura, culpa, choro envergonhado, desejos inconfessáveis, pensamento em Gonçalo. Olhos nos olhos de Tanira, tão desvairadamente verdes. Os noivos na cama longe dali decerto abraçados, colados, fundidos. Olhos nos olhos mesmo no escuro. A cor dos olhos dele devia brilhar no escuro, como os dos gatos, dos tigres. Um gato no cio miou lá fora, e ela revirando-se, mãos buscando água na mesinha de cabeceira, sono pesado, pesadelo verde, cheio de olhos e gatos, valsas e tigres. Na manhã seguinte, a vergonha de si mesma, das coisas que pensara durante a noite — seria doida? O medo de retratar-se em cada gesto, em cada palavra, a fazia cerrar-se áspera à menor tentativa de aproximação dela e das irmãs restantes. E à noite, outra vez o corpo ardia no desejo impossível do corpo do pequeno. Os dias atordoados, as noites longas, suores, frustração. O tempo, remédio pra tudo, diziam, passando. As irmãs casando sem parar. Teresa ressecando. Os pais morrendo. Quando eles morreram, o pai menos de ano depois da mãe, ela não chorou. Já havia esgotado, pensava, sua capacidade de sofrer. Mas pensando na relativamente boa situação financeira em que ficara após a morte deles, a única solteira e desamparada, não podia deixar de lembrá-los com gratidão.

Teresa de luto fechado, sozinha em casa com o gato. Às segundas, visita de Têmis; às terças, visita de Tania; às quartas, de Teima; às quintas, de Tatiana; às sextas, de Tflia, que as outras moravam em outras cidades. Os sábados livres para igreja, cemitério. Domingos: banho, vestido bem passado, talco, perfume, coque, janela. Olhos gulosos nos homens que passavam. Olhos úmidos ao ouvir as crianças de mãos da- das cantando “Se eu roubei, se eu roubei teu coração, tu roubaste, tu roubaste o meu também”. Novelas no rádio e leituras para matar o tempo. No começo, desde almanaques de farmácia até livros de colégio, depois dedicou-se somente às histórias infantis. Domingo à tarde, debruçada na moldura verde da janela, em segredo punha nos vizinhos apelidos tirados dos livros. Branca de Neve era a moça branca e anêmica, diziam que tuberculosa, filha de seu Libório açougueiro que, por sua vez, era o gigante de João e o Pé de Feijão. As irmãs Rosa Branca e Rosa Vermelha, as duas metidas filhas do médico, e a Moura Torta. a portuguesa da venda, coitada, tão boazinha apesar do narigão e da corcunda. E foi assim que apareceu o príncipe Sapo.
Teresa adorava aquela história, já lera mais de dez vezes. “Ai como sou besta e sem fundamento”, pensava, tamanha mulher lendo e ainda por cima gostando dessas bobagens para crianças.” Pensava vagamente em procurar um médico para curar a mania, ouvira falar de psicólogos, médicos de cabeça, que curam coisas assim. Mas não fazia nada. Fugia a toda hora para aquele mundo feito de casas de doce, castelos, fadas, maçãs mágicas. Sonhava com o príncipe Sapo. Negava o real, enojava-se da lembrança de Gonçalo, braços cabeludos, peito cabeludo, suado, cheiro de homem, cigarro e cerveja, banhas incipientes com o casamento. Tinha nojo, sim. Comparava-o ao príncipe Sapo — louro, delicado, perfumado, olhos azuis — não verdes, verdes não! —, tocando piano com aquelas mãos tão alvas. Gonçalo tocava violão. Teresa odiava violão, amava violão. Odiava Gonçalo, amava Gonçalo. De manhã, no espelho, chamava-se em voz alta de besta, besta, besta. Estava ficando louca e velha e feia e quase quarentona e ressecada e cínica, até cínica. meu Deus. Chorava. Recompunha Gonçalo na memória traço por traço, depois apagava tudo com as imagens dos príncipes das histórias infantis.

Resolveu então encontrar o príncipe Sapo. Durante três domingos procurou-o inutilmente em todos os homens que passaram sob a janela. No quarto, debruçada na janela verde, cabelos presos no coque, talco, banho recente, corpo apaziguado — pois no quarto domingo achou. Não, não era louro nem delicado, nem tinha os olhos azuis. Resumindo: em nada se parecia à gravura do livro. Em compensação, lembrava tanto um sapo que ela não pôde deixar de olhá-lo atenta.

E lá vinha ele descendo a rua, baixinho, cheio de tiques, os olhos saltados saltando para os lados. Um terno surrado dançando no corpo franzino, uma pasta embaixo do braço, caminhando como se fosse aos saltos. Um sapo perfeito.
Ela riu alto e ele quase parou, espantado com aquele riso tão claro na garganta da solteirona da janela verde. Depois se foi, baixinho, nervoso. Teresa ficou olhando até que desaparecesse na curva da rua. À noite sonhou com ele. Não mais com a figura do livro, mas com ele mesmo, o sapo. Sonhou coisas que a fizeram corar no dia seguinte, olhando-se ao espelho e chamando-se baixinho de cínica, cínica, cínica.

Indagou pela vizinhança, até descobrir. Era professor de piano, pobre, solteiro, morava na pensão da esquina, O nome: Francisco, todos chamavam de Chico. Nada lembrava príncipe, nem sapo. Professor de piano, isso gostava. Resolveu comprar um piano. Comprou. Tomásia, Tônia, Tatiana, demais tês e respectivos maridos censuraram-na por jogar fora assim a herança dos pais, coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo, e ela já querendo gastar dinheiro, assanhada, ingrata, e num piano, logo num piano, coisa preta, grande e quase sem utilidade, a não ser tocar, coisa que aliás ela não sabia, profanadora do luto, arriscando-se a levar castigo divino, nem parecia que respeitava a memória deles, nem parecia que era católica apostólica romana.

— Chega! — berrou Teresa, replicando que já tinha quase quarenta anos, o dinheiro era seu, fazia o que bem entendesse dele, não seria por isso que deixaria de amar os pais, coitados, tão bons, fal há tão pouco tempo. — E além disso — continuou nética —, vocês têm seus maridos e filhos para trair, e eu, que que eu tenho? Me digam, o que tenho nesta casa vazia?
Escândalo. As irmãs saindo uma a uma, das, chamando-a de cínica, cínica, cínica. Relações
cortadas.

Mas o piano veio. Grande, rabudo, pretíssimo. Dedos cansados acariciando teclas à toa. Sons difusos, dissonantes, espalhando-se pela casa grande e deserta, entrando no coração amargurado de Teresa, ferindo-o de leve. Leve como o toque de seus dedos nas teclas frias, frias como as lágrimas pingando no assoalho escuro, escuro como a madeira envernizada do piano na qual ela passava a mão como se fosse uma pele de gente.

Não perdeu tempo. Em seguida, as aulas. O príncipe Sapo batendo tímido na porta. Olhos baixos, pés esfregados no capacho. E escalas, escalas e mais escalas. Notas, sustenidos, bemóis, cachorro vai, dó-ré-mi, claves, mi-dó-ré, pauta, compasso, cachorro vem, ré-mi-dó. Teresa deslumbrada, como se tivesse em suas mãos a chave do cofre onde o mundo esconde seus tesouros. Quase esqueceu-se do verdadeiro motivo pelo qual comprara o piano, tanto gostava de música. A solidão nem mais pesava. Havia agora um amanhã, um ontem, um hoje. Havia o piano, as lições, os exercícios. Esqueceu o gato, a janela no domingo, os livros infantis, as novelas. Havia o piano. E havia também o príncipe, o Sapo.

No começo tinha nojo dele. O homenzinho apagado demais, humilde demais, sempre quieto, como consciente do desprezo que provocava, e por isso mesmo mais desprezível. Mas ao cair de uma tarde, Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com pena, depois com compreensão, depois com simpatia, depois... Bem, noutro dia suas mãos tocaram-se rápidas sobre o teclado. Afastaram-se logo. A dele trêmula, nervosa; a dela hesitante; ambas, encabuladas. No dia seguinte buscaram-se discretamente, tocando-se como que por acaso, as quatro mãos. Uma semana mais tarde olharam-se nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha, quase sem ilusões.

O piano cantava cada vez com mais alegria, os rumores na rua cresciam, todo mundo comentando a pouca vergonha. Mas Teresa feliz, feliz, feliz. Uma página inteira feliz. Um livro inteiro feliz. Um mundo inteiro, Teresa feliz.

Até que Gonçalo, sempre o cunhado mais decidido, veio falar com ela. Tranqüila, Teresa ouviu...

— Olha, não temos nada com a sua vida, nem eu nem sua irmã, mas achamos que devemos... — pigarreou, tossiu, meio engasgado com as palavras difíceis ensaiadas antes — ... devemos zelar pelo bom nome da famflia, tão representativa na sociedade local. Afinal de contas, seus pais...
— . . .coitados, tão bons, falecidos há tão pouco tempo — interrompeu Teresa distraída.

Gonçalo parou, surpreso. Ela sorriu com o canto da boca. ironia, ele desconfiou. Mas prosseguiu:

— Pois é, isso. Eles não haviam de gostar.

— Mas gostar de quê?

— Desses rumores.

— Quais rumores, Gonçalo?

Ele começou a perder a paciência. Os olhos antigamente tão incrivelmente verdes! ela pensou com pena — ganharam um brilho frio e mau e opaco de vidro sujo, fundo de garrafa.

— Ora, Teresa, não se faça de inocente. Você já não é mais nenhuma criança, já tem trinta e cinco anos e...

— Trinta e oito.

— Pois é, isso. Não é mais idade de andar namoricando com esse tal de professor que não tem nem onde cair morto, e deve estar de olho mesmo é no seu dinheiro, esse...

— Príncipe Sapo.

— Hein?

— Príncipe Sapo, ora.

Gonçalo olhou melhor para ela. E adoçou a voz como quem fala com uma criança — ou uma louca —, os olhos retomando por segundos aquele verde bom de antigamente.

— Que príncipe, Teresa?

— Sapo, já disse. Que coisa, parece surdo. Aquele que pegou a bola de ouro da princesa e pediu para ir com ela, comerem juntos, dormiremjuntos, você sabe.
Gonçalo desviou os olhos e deslizou-os pela sala, o piano enorme e o retrato de Chico Francisco príncipe Sapo sobre ele. Teresa acompanhou seus olhos pensando — “Gonçalo, eu amei você. Seus olhos verdes, seu violão. Amei a serenata que você nunca me fez”. Depois foi falando devagar, sílaba por sílaba, como se o que dissesse fosse algo muito frágil:

— Eu vou me casar com o Chico — “Francisco príncipe Sapo”, completou mentalmente. E mentiu, deixando-se embalar pelas próprias palavras: — Já mandei até ver o vestido, branco, comprido, com uma cauda deste tamanho. Vou casar de noiva, dos pés à cabeça.
Gonçalo suspirou. Já ouvira falar de muitos casos assim, essas moças passadonas, solitárias. Podia ficar ainda mais grave com o passar do tempo. Não tinha cura. Pediu licença, levantou e se foi, levando para sempre seu olhar já nem tão verde e a serenata frustrada.

Pausa de uma lição. Sobre o guardanapo branco do piano, chá e bolinhos. Zumbido de mosca voando, entontecida pelo calor. Teresa com os dedos que há pouco ensaiaram no teclado, sem erro, a primeira parte de Pour Élise descansados no regaço. Feliz, feliz, feliz, casar.

— Chico — disse de repente —, nós vamos nos casar.

Silêncio. Teresa envolveu com olhar terno aquele homem pequenino demais, humilde demais — mas tão seu, o único que a vida lhe dera. A mosca zumbia mais, o calor aumentava, cinco da tarde de janeiro. Então ele olhou bem fundo nos olhos dela. Tinha uns olhos pardos, salientes, caídos, infinitamente tristes.

— Eu não posso, Teresa. Não posso casar com você. Nem com ninguém.
E foi explicando aos trancos, a voz ainda mais baixa, mais cansada.

— Foi no quartel, há muitos anos. Uma granada, você sabe, explosão, um acidente, estilhaços. Não sou homem inteiro. Só meio homem, entende, Teresa? Não me obrigue a falar nisso!

Teresa endureceu o rosto, imóvel na cadeira. Antes que ela falasse, o príncipe Sapo foi saindo exatamente como entrara: cabeça baixa, meio tropeçando no capacho. Na porta ainda parou e olhou para trás. E achou-a tão bonita ali sentada na sala clara, ao lado do piano, aquele olhar triste e irônico, os cabelos finos e lisos presos no eterno coque, as mãos cruzadas no regaço, tão bonita que não pôde deixar de sorrir. Foi esse sorriso que doeu em Teresa. Doeu pelo resto da vida.
Ah, pobre Teresa, irmã de mil outras teresas do mundo inteiro. Piano vendido num leilão. Domingo à tarde, cabelos num coque, banho recém-tomado lavando mágoas e suores. Teresa na janela verde. Teresa olhar irônico e triste. Teresa olhar guloso em todos os homens que passam. Teresa de olhos úmidos ouvindo as crianças a esganiçar Rua da Solidão. Fogueira no corpo ainda virgem de quase quarenta anos, 
fogueira no fundo do pátio incendiando livros e sonhos, bruxas e príncipes. Vontade de gritar, gritar bem alto e bem forte, sozinha à beira do fogo. O vento bate e salva do fogo uma página colorida e sopra-a pela rua afora. Ah, outra vez essa vontade de gritar um grito alto e triste que dobre lá longe, junto com a folha colorida em chamas, na mesma esquina onde dobrou para sempre Francisco Chico príncipe Sapo última esperança.

Caio Fernando Abreu

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Fuga

Para Cecília Nisemblat

Eles tinham seis anos de idade e iam fugir juntos. Lento, o menino enfiou o pião no bolso, sua única posse, e encaminhou-se para a porta. De dentro chegou a voz da mãe num prenúncio de reclamação está quase na hora do jantar, onde é que você vai? Não respondeu. Em silêncio, começou a concretizar o que há dois dias se desenrolava dentro dele. A segurança da coisa construída em imaginação durante horas de quietude emprestava a seus passos uma precisão até então inédita, permitindo-lhe a audácia de não responder, ignorando eventuais palmadas. O trinco quase machucou a mão no ato de fechar a porta, mas ele já começava a criar das coisas que formavam "o que ficava". E o que ficava era tanto que praticamente não tinha nada\além de: um pião no bolso e uma ideia na cabeça.

O morrer do sol colocava uma cor também de fuga nas casas, nas coisas, nas pessoas que cruzavam numa melancolia de anoitecer. Em breve as sombras se afirmariam em escuro e ele não estaria mais ali. A ideia poderia quebrá-lo por dentro, porque era duro de repente não estar mais num lugar. Mas ele nem se machucava, há tanto já adivinhara os movimentos interiores prevenindo os receios, precavendo-se contra a série de sentimentaloidices que se amontoariam bruscas sobre seu coração de seis anos de vida. Por tanto, estava preparado. Dentro do tempo que vive era, dois dias era uma longa preparação de esqueci mento que se impusera com método, recusando ternuras, comida na boca, cafuné antes de dormir.

Estava todo delineado. E fugia.

Caminhava devagar, a coisa remexendo-se com gosto dentro dele. Num esquecimento de que era insípida, quase estalava a língua de puro prazer. Mãos nos bolsos, cabeça baixa, ah nunca se sentira tão definitivo. Era seu primeiro crime, e tão longamente premeditado que não havia espanto nem temor. Como um profissional da fuga, ia indo pela calçada comprida, rente ao muro. O sol espichava sua sombra para trás, vez em quando ele se voltava para ver se ela ainda o acompanhava. Ainda. Expressava seu alívio em forma de suspiro, e prosseguia. Permitia-se apenas esse medo, o de estar sozinho. Mas aquela sombra imensa e achatada contra o cimento não deixava de ser uma segurança, embora disforme.
Pegou uma pedrinha branca e começou a riscar o calçamento. Depois enfiou-a no bolso, numa sabedoria de coisa decidida: poderiam segui-lo através do risco fino, irregular. Ainda mais seguro, olhou quase vesgo de satisfação para uma senhora com a bolsa grávida de compras. A mulher encarou-o com desconfiança. Ele parou, o medo se transformando em desafio nos olhos que meio furavam a natureza da mulher. Suspensos no meio da tarde, mediam-se expectantes. Pensou em correr, depois riu um risinho cínico que aprendera na televisão -ela não sabia de seu crime. Então esperou. Até que a mulher abriu a bolsa e estendeu-lhe dois biscoitos. Balbuciou um agradecimento de espanto com tanta inocência humana e enfiou-os no bolso, junto com a pedrinha branca. A silhueta da mulher morria na esquina quando ele se interrogou, numa primeira incompreensão. Saíra de casa apenas com o pião, agora já tinha dois biscoitos, uma sombra, uma pedrinha branca e um acontecimento. Fugir não era então ir se despojando de coisas? Não entendeu, mas o poste que marcava longe o lugar do encontro suspendeu a dúvida. Preocupado, encaminhou-se para lá.

Não via a menina. Correu para o poste, investigou as pessoas que passavam mas nenhuma tinha jeito-de-menina-que-ia-fugir. Coçou a cabeça. Num desânimo, esperar. Acomodou a irritação no meio-fio, tirou as posses do bolso. Começava por um biscoito, depois brincava com o pião, depois o outro biscoito, depois desenhava no chão com a pedrinha branca, depois pensava na coisa acontecida. Detestava a improvisação, por isso ficou um pouco abalado com a ausência da menina e teve que planejar ações em que não havia pensado. Começava a desconfiar seriamente da honestidade do sexo oposto. Acumulou uma série de queixas que abalaram o prestígio da menina, e preparava-se para pensá-las quando o biscoito sobre a calça fez um jeito fascinante, assim meio pedindo para ser comido. Havia-se recusado tantas coisas nos últimos dois dias que guardava mesmo um pouco de fome formando um espaço branco no estômago. Rompendo com o planejamento, devorou voraz os dois biscoitos, depois misturou pedaços de unhas aos farelos restantes. Quase saciado, girou o pião de leve no cimento. Um menino que passava olhou fixo, invejando. Lembrou da impontualidade da menina e perguntou objetivo:

-Quer fugir comigo?

Inexperiente dessas coisas, o outro arregalou os olhos:

-Quê?

-Quer fugir comigo?

-Pra onde?

-Não sei ainda. Qualquer lugar.

-Pode ser Vênus?

-Pode.

-E Gotham City?

-Pode.

-E. ..e. ..(a geografia falhava).

-Quer ou não quer?

-Não sei, o que é que você me dá se eu fugir com você?

O menino investigou as posses desfalcadas. Percebeu o brilho de cobiça nos olhos do outro:

-O pião. Quer?

O outro fez cara de dúvida:

-Sei não. Isso presta?

-Quer ou não quer? ("É pegar ou largar", dizia o gangster na televisão).

-Quero.

Estendeu a mão. O menino fez um movimento esquivo de dissimulação.

-Agora não. Só depois que a gente chegar lá.

-Lá onde?

-No lugar, ora.

-Que lugar?

-O lugar para onde a gente vai fugir .

-Mas você não disse que não sabe onde é?

-Disse.

-Então pode levar anos.

-E daí?

-Daí que eu quero o pião agora.

Desacostumado a argumentar, estendeu o pião. Antes que pudesse fazer qualquer gesto, o outro já vai longe, risada dobrando a esquina, o pião roubado, a promessa não cumprida. Todo magoado com a desonestidade alheia voltou a pensar na menina. Encaminhou-se para a casa dela. Bateu devagar na porta. A mãe da menina espiou pela janela.

-A Lucinha está?

-Não. Foi no aniversário da menina aqui ao lado.

Meio que tropeçou no inesperado da coisa. Devia ter ficado pálido, porque a mãe-da-menina-que-ia-fugir dobrou-se para ele, perguntando se estava sentindo alguma coisa. Estava. Mas como desconhecia aquela onda verde bem claro que se quebrava incompleta dentro dele, não teve palavras para explicar.

Disse não, não tenho nada, e foi saindo de cabeça baixa. Já não só duvidava da menina, mas principalmente de si próprio. Parecia-lhe um pouco culpa sua aquele amontoado de desencontros. De dez minutos para cá aconteciam coisas tão incompreensíveis que estava quase desistindo. Por uma questão de dignidade, bateu na porta da casa de menina-que-estava-de-aniversário, que apareceu de vestido cor-de-rosa perguntando se ele tinha trazido presente. Ele desentendeu um pouco mais, ainda assim fez voz firme e pediu para falar com a menina-que-ia-fugir. Com o maior cinismo do mundo, ela brotou de repente duma nuvem de babadinhos, a cara limpa, o cabelo penteado com uma fita -ela, a falsa, que vivia com os fios na boca. Mais grave: um copo de guaraná e uma cocada nas mãos. Nunca a vira tão Lucinha em toda a sua vida.
Teve vontade de dar um tiro nela. Mas estava tão desarmado que só conseguiu perguntar com voz meio irregular:

-Você não ia fugir comigo?

-Ia - disse a menina mordendo a cocada. E ai! O espaço branco da fome cintilou dentro dele.

-Esperei você até agora. Por que que você não foi?

-Por causa do aniversário, ué.

-E o que que tem isso?

-Tem que fugir a gente pode todos os dias, mas aniversário é só de vez em quando.

Tinha selecionado uma porção de adjetivo pejorativos para jogar em cima dela, mas o pretexto era de uma lógica tão irrecusável que ele ficou parado uma porção de tempo, sentindo o tudo que preparara lento em dois longos dias de meditação ir-se desfazendo como a cocada na boca da menina.
Ela olhava para ele, ele pensava na frase, pensava, pensava, ai, o espaço branco aumentando por dentro, uma baita raiva da menina, da mulher que dera os biscoitos, do moleque que fugira com o pião, vontade de bater neles todos ou, na impossibilidade, sapatear até ficar roxo e a mãe chamar o médico num susto. Mas os barulhos da festa cresciam lá dentro, o sol morrendo dourava ainda mais o guaraná, o espaço em branco aumentava até o não-suportar-mais. Indeciso ainda, virou o pé leve no chão. Até que deixou de lado o pudor e perguntou:

-Será que ela deixa eu entrar sem presente?


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Do outro lado da tarde

Sim, deve ter havido uma primeira vez, embora eu não lembre dela, assim como não lembro das outras vezes, também primeiras, logo depois dessa em que nos encontramos completamente despreparados para esse encontro. E digo despreparados porque sei que você não me esperava, da mesma forma como eu não esperava você. Certamente houve, porque tenho a vaga lembrança - e todas as lembranças são vagas, agora -, houve um tempo em que não nos conhecíamos, e esse tempo em que passávamos desconhecidos e insuspeitados um pelo outro, esse tempo sem você eu lembro. Depois, aquela primeira vez e logo após outras e mais outras, tudo nos conduzindo apenas para aquele momento.

Às vezes me espanto e me pergunto como pudemos a tal ponto mergulhar naquilo que estava acontecendo, sem a menor tentativa de resistência. Não porque aquilo fosse terrível, ou porque nos marcasse profundamente ou nos dilacerasse - e talvez tenha sido terrível, sim, é possível, talvez tenha nos marcado profundamente ou nos dilacerado - a verdade é que ainda hesito em dar um nome àquilo que ficou, depois de tudo. Porque alguma coisa ficou. E foi essa coisa que me levou há pouco até a janela onde percebi que chovia e, difusamente, através das gotas de chuva, fiquei vendo uma roda-gigante. Absurdamente. Uma roda-gigante. Porque não se vive mais em lugares onde existam rodas-gigantes. Porque também as rodas-gigantes talvez nem existam mais. Mas foram essas duas coisas - a chuva e a roda-gigante -, foram essas duas coisas que de repente fizeram com que algum mecanismo se desarticulasse dentro de mim para que eu não conseguisse ultrapassar aquele momento.

De repente, eu não consegui ir adiante. E precisava: sempre se precisa ir além de qualquer palavra ou de qualquer gesto. Mas de repente não havia depois: eu estava parado à beira da janela enquanto lembranças obscuras começavam a se desenrolar. Era dessas lembranças que eu queria te dizer. Tentei organizá-las, imaginando que construindo uma organização conseguisse, de certa forma, amenizar o que acontecia, e que eu não sabia se terminaria amargamente - tentei organizá-las para evitar o amargo, digamos assim. Então tentei dar uma ordem cronológica aos fatos: primeiro, quando e como nos conhecemos - logo a seguir, a maneira como esse conhecimento se desenrolou até chegar no ponto em que eu queria, e que era o fim, embora até hoje eu me pergunte se foi realmente um fim. Mas não consegui. Não era possível organizar aqueles fatos, assim como não era possível evitar por mais tempo uma onda que crescia, barrando todos os outros gestos e todos os outros pensamentos.

Durante todo o tempo em que pensei, sabia apenas que você vinha todas as tardes, antes. Era tão natural você vir que eu nem sequer esperava ou construía pequenas surpresas para te receber. Não construía nada - sabia o tempo todo disso -, assim como sabia que você vinha completamente em branco para qualquer palavra que fosse dita ou qualquer ato que fosse feito. E muitas vezes, nada era dito ou feito, e nós não nos frustrávamos porque não esperávamos mesmo, realmente, nada. Disso eu sabia o tempo todo.

E era sempre de tarde quando nos encontrávamos. Até aquela vez que fomos ao parque de diversões, e também disso eu lembro difusamente. O pensamento só começa a tornar-se claro quando subimos na roda-gigante: desde a infância que não andávamos de roda-gigante. Tanto tempo, suponho, que chegamos a comprar pipocas ou coisas assim. Éramos só nós depois na roda gigante. Você tinha medo: quando chegávamos lá em cima, você tinha um medo engraçado e subitamente agarrava meu braço como se eu não estivesse tão desamparado quanto você. Conversávamos pouco, ou não conversávamos nada - pelo menos antes disso nenhuma frase minha ou sua ficou: bastavam coisas assim como o seu medo ou o meu medo, o meu braço ou o seu braço. Coisas assim.

Foi então que, bem lá em cima, a roda-gigante parou. Havia uma porção de luzes que de repente se apagaram - e a roda-gigante parou. Ouvimos lá de baixo uma voz dizer que as luzes tinham apagado. Esperamos. Acho que comemos pipocas enquanto esperamos. Mas de repente começou a chover: lembro que seu cabelo ficou todo molhado, e as gotas escorriam pelo seu rosto exatamente como se você chorasse. Você jogou fora as pipocas e ficamos lá em cima: o seu cabelo molhado, a chuva fina, as luzes apagadas. Não sei se chegamos a nos abraçar, mas sei que falamos. Não havia nada para fazer lá em cima, a não ser falar. E nós tínhamos tão pouca experiência disso que falamos e falamos durante muito e muito tempo, e entre inúmeras coisas sem importância você disse que me amava, ou eu disse que te amava - ou talvez os dois tivéssemos dito, da mesma forma como falamos da chuva e de outras coisas pequenas, bobas, insignificantes. Porque nada modificaria os nossos roteiros. Talvez você tenha me chamado de fatalista, porque eu disse todas as coisas, assim como acredito que você tenha dito todas as coisas - ou pelo menos as que tínhamos no momento.

Depois de não sei quanto tempo, as luzes se acenderam, a roda-gigante concluiu a volta e um homem abriu um portãozinho de ferro para que saíssemos. Lembro tão bem, e é tão fácil lembrar: a mão do homem abrindo o portãozinho de ferro para que nós saíssemos. Depois eu vi o seu cabelo molhado, e ao mesmo tempo você viu o meu cabelo molhado, e ao mesmo tempo ainda dissemos um para o outro que precisávamos ter muito cuidado com cabelos molhados, e pensamos vagamente em secá-los, mas continuava a chover. Estávamos tão molhados que era absurdo pensar em sairmos da chuva. Às vezes, penso se não cheguei a estender uma das mãos para afastar o cabelo molhado da sua testa, mas depois acho que não cheguei a fazer nenhum movimento, embora talvez tenha pensado. Não consigo ver mais que isso: essa é a lembrança. Além dela, nós conversamos durante muito tempo na chuva, até que ela parasse, e quando ela parou, você foi embora.

Além disso, não consigo lembrar mais nada, embora tente desesperadamente acrescentar mais um detalhe, mas sei perfeitamente quando uma lembrança começa a deixar de ser uma lembrança para se tornar uma imaginação. Talvez se eu contasse a alguém acrescentasse ou valorizasse algum detalhe, assim como quem escreve uma história e procura ser interessante - seria bonito dizer, por exemplo, que eu sequei lentamente seus cabelos. Ou que as ruas e as árvores ficaram novas, lavadas depois da chuva. Mas não direi nada a ninguém. E quando penso, não consigo pensar construídamente, acho que ninguém consegue. Mas nada disso tem nenhuma importância, o que eu queria te dizer é que chegando na janela, há pouco, vi a chuva caindo e, atrás da chuva, difusamente, uma roda-gigante. E que então pensei numas tardes em que você sempre vinha, e numa tarde em especial, não sei quanto tempo faz, e que depois de pensar nessa tarde e nessa chuva e nessa roda-gigante, uma frase ficou rodando nítida e quase dura no meu pensamento. Qualquer coisa assim: depois daquela nossa conversa - depois daquela nossa conversa na chuva, você nunca mais me procurou.


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Uma fábula chatinha

“Sentado à beira do caminho, o homem cansado ficou quieto, espiando a vida que passava”.

Era uma vez um homem cansado que ia indo por um caminho. Tinha passado do meio-dia, a tarde estava ficando muito quente. No ar azul e claro não soprava nenhum vento, O homem procurou a sombra de uma árvore, sentou e ficou ali, quieto.

Até que passou um surfista. Ia de moto, sem camisa, a bermuda colorida, a prancha amarrada na garupa da moto. Abanou para o homem sentado, mas ele não se mexeu.

“Coitado” — pensou o homem. — “Vai indo assim todo animado. Parece que não sabe que vai morrer um dia.”

Remexeu a areia com um pedacinho de pau, mas sem prestar atenção. Então passou uma velhinha que parecia saída de um livro de histórias infantis. Usava um vestido escuro, comprido, e carregava no ombro uma dessas latas de metal, cheia de leite. Caminhava muito depressa.

“Coitada” — pensou o homem. — “Velha desse jeito, pra que tanta pressa? A morte vai chegar logo — e aí?”

Acendeu um cigarro, ficou soltando anéis de fumaça contra o céu cada vez mais azul. Aí passaram duas moças de braço dado. Parecia que recém tinham tomado banho, tão fresquinhas estavam. Os cabelos ainda molhados brilhavam ao sol. Cochichavam e riam muito, olhando o homem sentado, que nem olhava para elas.

“Coitadas” — o homem pensou. — “Tão assanhadinhas. Ah, se elas soubessem que a morte existe e pode chegar a qualquer momento...”

Ficou um rastro de perfume no ar, mas ele nem respirou mais fundo nem nada. De repente um passarinho começou a cantar, no galho bem acima dele. Ouviu um pouco, depois cuspiu de lado.

“Coitado” — o homem pensou. — “Esse idiotinha fica cantando à toa, de repente vem um moleque, joga uma pedra e pronto, acabou.”

Estendeu as pernas, mas logo as recolheu assustado. De longe, vinha um barulho forte como o de um exército em marcha. O homem fixou bem os olhos na curva da estrada. Até que apontou um elefante lá longe. Depois vieram tigres, macacos, camelos, mágicos, equilibristas: era um circo passando. Os palhaços fizeram micagens especiais para ele, mas o homem não deu atenção. A bailarina, equilibrada num pé só sobre o pônei branco, jogou uma rosa vermelha de tule a seus pés, mas ele não apanhou.

“Coitados” — pensou o homem. — “Quanta ilusão. Um dia o circo pega fogo, a morte chega e de que serviu essa alegria toda?”

Com a ponta do pé, empurrou para longe a rosa vermelha. Nesse momento, ia passando um casal de namorados. O rapaz pegou a rosa, sacudiu para afastar a poeira, depois colocou-a nos cabelos da moça. Ela sorriu, e agradeceu com um beijo. Ele respondeu com outro, ela com outro — e assim foram indo, aos beijos, até sumirem.

“Coitados” — pensou o homem. — “Amor, amor: não tem besteira maior. Casam, têm filhos, ficam velhos, doentes. Um dia morrem e pronto.”

A tarde quase já tinha virado noite, quando um vulto encapuzado veio se aproximando. Ele precisou apertar os olhos para ver melhor. Mesmo assim, não via direito a cara do vulto que se aproximava cada vez mais, até parar bem na frente dele.

— Quem é você? — o homem perguntou. A figura afastou o capuz, mostrou os dentes arreganhados e disse:

— Sou a Morte. Posso sentar ao seu lado?

O homem deu um pulo.

— Não — ele disse. — Já está ficando tarde e eu ainda tenho muito o que fazer.

Virou as costas e saiu correndo, sem olhar para trás.

Caio Fernando Abreu

O Estado de S. Paulo, 1/o4/1987 - In Pequenas Epifanias

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O burguês e o crime

O burguês

Foi durante a noite que, de repente, ele se fez a pergunta:
— Por que não?
A pergunta finalizava a série de pensamentos que haviam começado horas antes, quando estava no teatro. Fora com a mulher assistir a uma peça de sucesso, com artistas de sucesso, estreia recente e também de sucesso. As duas primeiras noites haviam sido dedicadas à alta sociedade, às classes produtoras, ao Corpo Diplomático, às autoridades constituídas e a penetras de diferentes origens e feitios. Na altura da terceira apresentação, ele chegara em casa e a mulher o intimara:
— É o fim, Figueiredo! Todo mundo já viu a peça, menos nós. Tem de ser hoje.
Uma semana depois, a peça seria suspensa por falta de público, mas naquela terceira noite ele teve de se acotovelar na entrada, discutir com os bilheteiros e terminar sendo explorado por um cambista que lhe vendeu duas péssimas poltronas com ágio pesado e imerecido.
Suportou, lá dentro — e estoicamente — os primeiros momentos da peça, mas ainda em meio ao primeiro ato desanimou de procurar entender o que se passava no palco. Era um drama complicado e palavroso, uma jovem que tinha neurose e amantes, um analista, uma enfermeira lésbica e, presidindo a tudo, um pai severo e asmático. Em suma: um conflito acima de suas possibilidades e de seu interesse.
Quando ia ao cinema, sempre podia dormir quando o filme seguia um rumo surpreendente assim. No escuro o cochilo ficava impune, a mulher nem suspeitava. À saída, ele concordava com a opinião da mulher e conseguiam chegar em casa sãos e salvos. Mas no teatro era difícil o cochilo. Havia luz, e pior que a luz, havia sempre a iminência de algo espantoso, o cenário despencar, a roupa da atriz cair, um ator ter enfarte ou esquecer o texto, um fósforo botar fogo no pano de boca. Tais e tantos atrativos impediam-no de dormir, mas propiciavam discreta dormência, o pensamento solicitado ora pelo calor, ora pela peça, ora ainda pelo pigarro de um velho na plateia, ou pelo sapato um pouco apertado que Ema — a mulher — o obrigara a usar.
Tivera um dia calmo, calmos eram todos os seus dias. A firma, apesar do sócio que era uma toupeira, prosperava. Saúde boa, perspectivas boas. Não tinha motivos para pensar no futuro ou no passado. Sobravam-lhe motivos para dormir no presente, a peça já era um motivo.
A frase, dita por alguém no palco, chamou-o de volta. Ele já contara as pregas do lado direito da cortina que compunha o fundo do cenário, e preparava-se, resignado, pra contar as pregas do lado esquerdo, quando ouviu alguém falar em morte.
Não, não ameaçavam ninguém de morte. O drama do palco era existencial, não continha mortes nem ameaças de. Fora uma frase convencional, assim como "não devemos matar a velha de susto", ou "se a velha souber disso pode morrer".
Matar ou morrer? Não chegava a ser uma opção, nem no palco, nem em sua vida, mas uma série de pensamentos que tinham, ora a sua lógica, ora o seu absurdo, e em ambos os casos, a sua conveniência. Evidente, não pensava nunca em sua própria morte, mas sabia que havia gente que morria e gente que matava. Os que morriam eram os doentes, os suicidas, os atropelados, os assassinos, os passageiros de avião ou da Central do Brasil. Os que matavam eram os criminosos, os ladrões noturnos, os tiranos, os motoristas de ônibus.
Não era agradável pensar em morrer. Logo retirou este elemento de sua opção e ficou apenas com o matar.
Matar o quê? Matar para quê? Na peça, falavam em matar uma velha de susto. Ele não tinha velha nenhuma à vista. A mãe já morrera, as parentas de velhice mais agressiva também já haviam morrido. Havia a sogra, ainda, mas não chegava a ser uma velha, e, além do mais, era uma excelente pessoa.
Se não adiantava matar uma velha, matar o quê?
Matar por matar, amor à arte, eis a questão. Matar para experimentar os nervos, ou para provar a si mesmo do que era capaz. Sim, isso justificava um crime. Mas para provar do que era capaz, não bastaria matar — isso qualquer idiota poderia fazer. Tinha de matar e permanecer impune — para poder se olhar no espelho e se sentir redimido, confiante: sou um caráter!
Foi então que surgiu o problema — que seria, nos próximos dias, o seu problema, o único problema realmente sério de sua vida — como obter o crime perfeito? Matar o porteiro de seu edifício, por exemplo, nunca seria um crime perfeito. Mais cedo ou mais tarde a polícia apertaria os moradores do prédio e ele acabaria confessando. Para matar impunemente teria de escolher um comerciário de Brás de Pina, uma funcionária subalterna que voltasse, tarde da noite, para o Leblon.
Mas seria estúpido matar sem motivo, embora matasse perfeitamente. O crime perfeito, sem lucro pessoal, não lhe interessava, aliás, pensando bem, agora que o primeiro ato terminava, nenhum crime lhe interessava.
Teve coragem para o comentário.
— Uma peça muito profunda!
A mulher não concordou nem discordou. Apenas disse:
— Vamos esperar pelo resto. Acho que vai sair um escândalo!
Foi a vez de ele concordar, embora não suspeitasse que tipo de escândalo estava prestes a estourar. Saiu para o hall circulou entre estranhos, bebeu um gole d'água gelada, sem sede mesmo, só para passar o tempo.
Durante o segundo ato os pensamentos seguiram outro rumo. Surgiu no palco um pastor protestante. Surgiu também um militar reformado que era mudo — e ele começou a pensar em como seria sua vida — e como seria ele mesmo — se não tivesse voz.
Chegou à conclusão e ao fim da peça: poderia manter o mesmo padrão de vida se, por acaso, ficasse sem voz. Era-lhe coisa inútil, espécie de adorno. Para ganhar dinheiro e dormir com a mulher — a voz era dispensável, uma responsabilidade incômoda.
Ao saírem, cumprimentou com a cabeça alguns conhecidos e fez a viagem de volta imaginando-se mudo. Conseguiu chegar em casa sem ter pronunciado uma só palavra — o que não era uma vantagem especial, sempre que iam ou que voltavam de algum lugar, a mulher é quem falava, ele apenas ouvia.
A grande oportunidade para testar a sua disciplina interior foi ao guardar o carro na garagem. Todas as vezes tinha de pedir à mulher que suspendesse o vidro da porta:
— Suspenda o seu vidro, Ema.
Àquela noite, engoliu em seco e esperou que a mulher saísse para, então inclinar-se no banco, com algum esforço para sua espinha já bombardeado por sedimentações calcárias que prenunciavam um respeitável bico-de-papagaio, e rodar a manivelinha até fechar o vidro.
Na cama, preparado para dormir, a palavra primeiramente, e o conceito depois, retornaram à sua cabeça e às suas preocupações: matar. Há muito não tinha insônia. A firma prosperava, vendia material de escritório aos ministérios militares, era pago em dia, e não faltavam encomendas, tanto Marinha como o Exército e a Aeronáutica — felizmente para ele e para Pátria — gastavam mais em papel timbrado do que em pólvora.
Geralmente, caía duro em cima da cama. De quinze em quinze dias ou de vinte em vinte dias, procurava a mulher para um amor apressado e quase sempre incompleto da parte dela.
Quando percebeu as horas, viu que gastara a noite toda pensando. Tinha disciplina interior feroz e eficiente. Se dormisse até as 9, estaria salvo. Virou para o lado e antes de escorregar definitivamente no sono, teve um pensamento também definitivo:
— "Se não fosse a polícia, eu matava!"


O crime

A firma era próspera e prosperava, apesar do sócio: um belo homem excelente caráter, pai amantíssimo, esposo exemplar, amigo irreprochável foi o mínimo que um orador, à beira do túmulo, disse dele, no dia do enterro: "Colhidos pela brutalidade de tua morte, aqui estamos, Anselmo, para prantearmos o excelente caráter, o pai amantíssimo, o esposo exemplar, o amigo irreprochável que acabamos de perder!".
No mesmo cemitério, à beira de outro túmulo, e mais ou menos mesma hora, Ema foi sepultada e chorada quase que solitariamente: quatro coveiros a sepultaram, com suas correntes e más vontades, e o marido chorou, apesar de tudo, segundo afirmaram alguns poucos presentes que ouviram os soluços de um enterro e o discurso do outro.
À noite, apareceram-lhe em casa alguns amigos compenetrados. Conforme afirmaram mais tarde, foram à casa dele unicamente para que Figueiredo "não fizesse uma besteira".
Apesar da presença dos amigos, Figueiredo conteve-se e não cometeu besteira nenhuma. Tomou apenas um porre, como lhe convinha, e disse obscenidades a respeito da vida e de si mesmo, chamando a vida de merda e chamando-se a si mesmo de corno. O que ia de encontro aos pensamentos gerais, embora os amigos protestassem, deixa disso, Figueiredo, deixa disso!
No dia seguinte ao do enterro, apareceu mal vestido e barbado para iniciar as providências legais das sucessões, pois sucedia ao sócio no controle da firma e sucedia à mulher nos bens do casal que eram muitos, o sogro lhe havia deixado apólices e casas em Vila Isabel.
Estava rico e livre agora da chatice do sócio e da chatice da mulher. E para ficar livre dos amigos, começou a cultivar mau hálito, o que impedia que os mais importunos se acercassem dele para dar conselhos, principalmente quando, após o escândalo da dupla morte, revelou-se o outro escândalo, o da fortuna que lhe chegava às mãos através de tão rudes eventos.
Rosnavam que, se não fossem as trágicas e patentes circunstâncias, a polícia deveria investigar melhor aquilo tudo. Mas a suspeita não tinha consistência — apesar do ódio que Figueiredo passou a provocar pela fortuna, pelo mau hálito, e pela liberdade que lhe chegara à vida. Ele mesmo, com o tempo, começou a esquecer, a duvidar do passado, e um dia, vendo no fundo do armário uma peça íntima de Ema, suspirou e sentiu saudades. Logo se aprumou, afugentou o pensamento macabro que lhe surgiu, e embora não houvesse ninguém à volta, disse em voz alta, como convinha a um homem que sofrera tanto:
— "Aquela cachorra!"
Porém já cinco anos eram passados da morte da cachorra e do cachorro. Cinco anos daquela tragédia que enlutou a família cristã, rudemente golpeada pelo escândalo daquele pacto de morte. Cronistas sem assunto escreveram sobre o pacto de morte tão romanticamente previsto e executado, foram ouvidas opiniões de sociólogos, de pedagogos e de sacerdotes sobre o caso. Cinco dias depois já ninguém falava no assunto e cinco anos depois, só mesmo ele, e às vezes, pensava em tudo, detalhadamente, como num passo heróico de sua vida.
Chegara àquela noite em casa, de uma viagem rápida a São Paulo, e baqueara ao entrar em seu quarto: caídos e nus, em cima da cama, a sua mulher e o sócio. Próximo do sócio, o copo partido, cujos resíduos foram examinados pelo Instituto de Criminalística e cuja malignidade foi devidamente provada.
A perícia, com a ajuda dele, reconstituiu os acontecimentos. Ele viajara a São Paulo, voltaria na noite seguinte. Tão logo se mandou pela estrada, Ema chamara o amante. A perícia examinou a vagina de Ema e encontrou sinais evidentes do coito recente. O imperscrutável aconteceu — e aqui o relatório policial foi respeitoso, ao afirmar que, "após manterem relações de fundo sexual, os dois amantes decidiram pôr fim à vida através de um pacto de morte que foi imediatamente cumprido".
Anselmo preparou o veneno, Ema bebeu estoicamente, sem repugnância pela morte ou pelo gosto de amêndoas que saía do copo. E Anselmo, logo em seguida, ingeriu o restante. Contorceram-se pouco, e logo se imobilizaram — e foi assim que, à noite, Figueiredo e mais tarde a polícia os encontraram.
No 18° Distrito Policial o pacto de morte foi classificado como "Ocorrência nº. 53.697" e arquivado após despacho do delegado-auxiliar, cumpridas as formalidades legais e pagas as taxas do costume.


O crime e o burguês

— "Se não fosse a polícia eu matava!".
Com essa frase ele adormecera, uma semana antes da tragédia que abalou a sociedade cristã e a sua vida. Viera do teatro e ficara pensando em matar, mas não sabia nem como, nem a quem matar. Não tinha nenhum problema importante na vida, tudo lhe ia bem, e essa inexistência de um problema dava-lhe a sensação de burrice, de imprestabilidade.
Desde que pensara em matar, sentiu que iniciava uma nova vida, fugia à rotina, à qual sempre se submetera. Era o seu problema, embora não fosse, ainda, a sua vontade. No trabalho, em casa, andando pelas ruas, tinha agora uma ordem fixa de pensamentos e de energias.
Certa tarde, regressando da cidade, parou no Flamengo. Entrou num prédio, tomou o elevador, fechou os olhos e apertou um botão: qualquer andar em que o elevador parasse, serviria. Parou no sétimo andar. Havia duas portas à frente, apertou a campainha do 701. A velhinha veio abrir e ele quase chegou ao crime: levou as duas mãos para a frente em direção ao gasganete da velha. Mas deu-lhe uma tremedeira nas pernas e ele recuou. O elevador ficara parado no andar e ele pôde fugir. Poderia ter deixado a velha morta, ninguém teria visto nada. Mas deixou a velha apenas surpreendida e irritada.
Passou uma noite de cão, reprovando-se a covardia. Tivera tudo à mão, a velha, o elevador, não esbarrara com ninguém, nunca entrara naquele prédio. A polícia procuraria pelos parentes da velha, os desafetos, os fornecedores, as ex-empregadas, os vizinhos. Não tivera ao alcance das mãos apenas o gasganete da velha: tivera nas mãos o crime perfeito — e o desperdiçara, sem lucro algum.
E então tremeu, emocionado e surpreso: acabara de descobrir o crime verdadeiramente perfeito: O LUCRO. Matar sem lucro, como no caso da velha, seria uma brincadeira idiota. Tinha de matar com muito lucro, com tanto lucro que ficasse óbvia a lucrabilidade do crime. E para tornar patente essa lucrabilidade, tinha de escolher uma vítima que fosse patentemente próxima de seus interesses. Viu a mulher dormindo a seu lado.
— "Se mato esta mulher — a minha mulher — o primeiro e necessário suspeito serei eu mesmo".
Riu, com a facilidade do problema. Tão fácil era o problema que resolveu exagerar. Não mataria apenas uma pessoa, mas duas. E, na escala de importância e de lucro, a segunda pessoa que lhe apareceu foi o sócio, o qual hipotecara, há tempos, a parte dele, para levar a mulher aos Estados Unidos, curar um tumor no colo do útero. Ele emprestara o dinheiro e ficara com as hipotecas do sócio. Se matasse o sócio, a firma ficaria inteiramente em suas mãos, era um lucro evidente, agressivo.
Dois dias depois, avisou à mulher que ia a São Paulo, viagem rápida. Saiu à noite, subiu em direção a Teresópolis. Deixou o carro numa rua que lhe pareceu deserta, tomou um ônibus e antes da meia-noite estava novamente em casa. Entrou pela garagem, como o fazia todas as noites, mas sem o carro, e por causa disso, não teve necessidade de acordar o garagista.
Surpreendeu a esposa:
— Ué? Você já voltou?
— Você está vendo.
Explicou que o carro enguiçara no quilômetro 97 da Rio — São Paulo, tomara um ônibus, amanhã voltaria ao local, com um mecânico. Foram dormir e ele procurou a mulher. Dessa vez, pela primeira vez em muitos anos, concentrou-se no esforço de fazê-la gozar — era parte do plano. Depois que ela estremeceu e gritou coisas indecentes — sinal que finalmente gozara — ele conseguiu, também, um escasso prazer. Mas logo levou a mão ao peito:
— Ema, o enfarte!
Caiu para o lado, olhos arregalados, bufando grosso. Ema deu um pulo da cama, nua.
— Vou buscar a coramina!
— Não! Chame o Anselmo, preciso falar com ele, é urgente, mas diga a ele para não contar a ninguém, para vir já! As hipotecas dele! Ele pode perder tudo!
Ema foi ao telefone, acordou Anselmo:
— O Figueiredo teve um enfarte. Venha correndo, mas não diga nada a ninguém. As hipotecas!
A mulher de Anselmo perguntou quem chamava o marido dela àquela hora da noite, mas Anselmo, apesar de esposo exemplar e pai amantíssimo, deu um grito:
— Vá à merda, mulher. Depois eu explico!
Ema foi à cozinha, apanhou um copo d'água. Quando voltou ao quarto, pingando gotas de coramina no copo, encontrou o marido em pé, com um copo na mão.
— Ué? Já ficou bom?
Figueiredo avançou para ela.
— Beba isso!
— Mas...
— Beba, sua idiota!
Era a primeira vez, em dezenove anos de casados, que se dava o nome ao boi naquela casa. Ema apanhou o copo, sentiu um cheiro estranho. Bebeu um gole e ainda teve tempo de perguntar:
— Para que é isso?
— É um afrodisíaco. Faz a gente gozar mais ainda.
Mas Ema não ouviu que ia gozar mais ainda. Caiu próximo à cama e Figueiredo arrumou-a o melhor que pôde. Mais alguns minutos, foi à porta da frente, esperar pelo sócio. Viu o elevador subir, a luzinha crescendo, crescendo. Anselmo saiu do elevador e deu com ele na porta.
— E o enfarte?
— Entre depressa!
Anselmo não gostou. A mulher dele ia falar o resto da vida contra aquela saída abrupta, misteriosa, ia ser o diabo explicar.
— Brincadeira tem hora! Cadê o enfarte?
Figueiredo estendeu-lhe o copo.
— Prove essa droga! Veja que gosto tem e se concorda comigo.
Anselmo provou, sentiu um gosto adocicado de amêndoas, mas não teve tempo de concordar. Figueiredo arrastou-o ao quarto, tirou-lhe a roupa, deitou-o ao lado de Ema, a mão estendida para fora do leito. Pegou no copo, colocou-o na mão de Anselmo, deixou que o copo se partisse no chão.
Apagou as luzes, deixando apenas um pequeno abajur aceso. Ganhou a rua, atravessando a garagem do prédio, o garagista tinha sono de pedra, quando chegava tarde, com o carro, tinha de esmurrar a campainha para que o homem lhe abrisse a porta dos carros.
Andou pela cidade, esperando o primeiro ônibus para Teresópolis. Deixara impressões no copo, nas roupas, em todos os lugares. Mas o lucro era tão dele que invalidava a suspeita. Deixara atrás de si um crime que se explicava por si mesmo.
Tomou o ônibus para Teresópolis. Com o sereno da noite, o carro ficara melado como um bicho. Antes de ligar o motor, abriu o painel de instrumentos e desligou o cabo do velocímetro. Desceu a serra, almoçou um frango assado à beira da estrada, atingiu a Avenida Brasil e cortou em direção oposta à cidade. Andou mais alguns quilômetros e pegou a Rio — São Paulo. Enfrentou as retas iniciais, atingiu a serra mas logo fez um contorno e embicou de volta ao Rio. Parou no posto de gasolina para abastecer o carro.
— Tem mecânico aí?
O mulato de maus dentes surgiu das entranhas de uma camioneta.
— É o cabo do velocímetro. Acho que houve alguma coisa com ele.
Deu boa gorjeta ao mecânico e ao homem do posto que lhe enchera o tanque,
tinha agora duas pessoas que atestariam que ele regressava de São Paulo.
Quando arrancou, os dois homens o chamaram de doutor:
— Boa viagem, doutor!
Chegou em casa, após uma boa viagem, e viu o quadro que logo os policiais examinaram, os jornais noticiaram e com o qual ele lucrou.


Moral

O crime, para o burguês, só não compensa quando a polícia está contra.

O texto acima foi publicado no livro "Babilônia, Babilônia", Ed. Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1978, e está entre "Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século", uma seleção de Ítalo Moriconi para a Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 270.

Friday 5 January 2018 0 comments

Pai contra mãe

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente" — ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse.

Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

Cândido Neves — em família, Candinho —, é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade. Fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao Ministério do Império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.

Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.

Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.

O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi — para lembrar o primeiro ofício do namorado — tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado em demasia a patuscadas.

— Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.

— Não, defunto não; mas é que...

Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.

— Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.

— Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.

Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.

A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo.

Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.

— Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.

A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa, os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.

— Vocês verão a triste vida, suspirava ela.

— Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.

— Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco...

— Certa como?

— Certa, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem gasta o tempo?

Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.

— A senhora ainda não jejuou senão pela Semana Santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...

— Bem sei, mas somos três.

— Seremos quatro.

— Não é a mesma coisa.

— Que quer então que eu faça além do que faço?

— Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu é vaga. Você passa semanas sem vintém.

— Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.

Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.

Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.

Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis.

Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa ao marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde, via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.

— É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.

Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.

A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.

— Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!

Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos Enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio.

— Titia não fala por mal, Candinho.

— Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem-criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...

Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor — crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.

— Quem é? perguntou o marido.

— Sou eu.

Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.

— Não é preciso...

— Faça favor.

O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.

— Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.

Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.

A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.

Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.

Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, , onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.

Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria maior a miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da Rua dos Barbonos.

Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto para preservá-lo do sereno. Ao entrar na , Cândido Neves começou a afrouxar o passo.

— Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.

Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à Rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do , viu do lado oposto um vulto de mulher; era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.

— Mas...

Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até ao ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.

— Arminda! bradou, conforme a nomeava o anúncio.

Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.

— Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!

— Siga! repetiu Cândido Neves.

— Me solte!

— Não quero demoras; siga!

Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porta de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites — coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.

— Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.

Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela , em direção à da Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.

— Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.

— É ela mesma.

— Meu senhor!

— Anda, entra...

Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinquenta mil-reis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.

O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à Rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as conseqüências do desastre.

Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos Enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.

— Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

 

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro <http://www.bibvirt.futuro.usp.br>  A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo . Permitido o uso apenas para fins educacionais.

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