No grande dia Primeiro de Maio,
não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto,
até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria
celebrar e havia de celebrar.
Os outros carregadores mais
idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor,
trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não
carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o
grande dia pela frente.
Dia dele… Primeiro quis tomar um
banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente,
celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba
era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos
sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra
cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do
espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente
nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso.
O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos
intempestivos, fazendo a barba.
Ia devagar porque estava
matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos
formidáveis nas fuças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era
apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia,
mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma
classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins”
do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.
O 35 apressou a navalha de puro
amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na
América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo,
feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente
dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35
não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam
tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o
35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o
35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do
Carnera, ah, um soco bem nas fuças dum polícia… A navalha apressou o passo
outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele
bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou
aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se
ela queria outra vez, safada! Riu.
Afinal o 35 saiu, estava lindo.
Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas
e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O
verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo
escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil,
imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão
e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do
trabalho.
Uma indecisão indiscreta o tornou
consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não
tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa.
Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na
Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou
lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele,
bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa
do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando
já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o
grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em
qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em
roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra
vez.
E como não encontrasse mesmo um
conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por
certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35
mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém
não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com
aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar
feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim
da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia
mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos
jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a
preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E
continuou no passo em férias.
Ao atravessar a estação achou de
novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie
não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia.
Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem,
passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço
ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase
longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O
35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou
mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação,
sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve
raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras
disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que
ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não,
estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não
acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno,
falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da
nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele
matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de
fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se
esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo
fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua
desmesurada força física, ah, as fuças de algum… polícia? polícia. Pelo menos
os safados dos polícias.
Pois estava escrito em cima do
jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se
falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara
todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos
arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco
na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados,
punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de
guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela,
trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do
ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das
Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas
por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois
poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer:
vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão,
se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das
Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente,
“operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era
tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a
primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos
no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região
Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele.
Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido
no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter
perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de
Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar
por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse
o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento”
dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso,
morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena.
Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…
Salvou-se lendo com pressa, oh!
os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam
(sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra
receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da
Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!
Foi correndo, estava celebrando,
raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão),
parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra
cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação.
Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde
pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando
chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre
indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às
quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal
de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam
dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava
necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente
achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais
contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais
graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava
torcendo pra não chegar com tempo na Estação.
Chegou tarde. Quase nada tarde,
eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão
que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também
e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que
parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que
eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis
oficiais. Nada feito.
Ao chegar na esquina o 35 parou
pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço
bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de
repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um
desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso.
Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se
ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.
Decidiu ir a-pé pra casa, foi
a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era
com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro
de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o
mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas
grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele
ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de
lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá.
Em todo caso, pra acabar o dia era uma ideia ir lá, com que pretexto?… Devia
ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o
Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva,
muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então
conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que
apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de
Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o
35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara,
que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na
Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu
com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser
soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe?
trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante
sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe
morreu na garganta.
Não eram bem treze horas
e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das
Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba
com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de
infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se
mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados,
vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio,
os grupos se apinhavam,conversando baixo, com melancolia de conspiração.
Polícias por todo lado.
O 35 topou com o 486,
grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não
trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde.
Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio,
um pouco de "motim". O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou.
Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas
sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas,
havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque
onde eles estavam.
Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de "proletários" lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.
Mas
foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários,
se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: "Podem
entrar! não tenham vergonha! podem entrar!" com voz de mandando assim na
gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era
impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz
mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando
das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia
caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.
Esses
movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que
ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era
carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam
ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio
era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de
gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que
estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem
espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias,
pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na
pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era
moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem
medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava
tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo,
naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade,
tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era
sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas
desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:
—
Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me'rmão! no parque ninguém não
pára não!
Cabeças-chatas…
E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto,
com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal
no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se
despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio
de viver.
O
bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas,
decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três
minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35
carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais
de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.
Acabara
por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza
cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica,
enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe
trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até
lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma
paz, que paz sem cor por dentro…
Pelas
dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara
quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já
se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma
correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os
grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então
quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto
magnânimo de dar feriado aos seus "proletários" também.
E
o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade
mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os
companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam
abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu
mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o
excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava
gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com
prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio
inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar
como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo
um muxoxo de desdém pra tudo.
Chegava
um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em
porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas
cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era
conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o
22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram
reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco
meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: "Assim não serve
não! As malas não vão não!" Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não
levava, mas as maletas elas "não largavam não", só as malas grandes
que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na
gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.
O
22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas
pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.
—
Deixe que te ajudo, chegou o 35.
E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.
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