Friday 14 January 2022 0 comments

Uma história de fadas

 Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo quem não duvidava (e eram poucos) também não tinha a menor ideia de como fazer para chegar lá. Mas, entre esses poucos, corria a certeza que, se quisesse mesmo chegar lá, você dava um jeito e acabava chegando. Só uma coisa era fundamental (e dificílima): acreditar.

Era uma vez, também, nesse tempo (que nem tempo antigo, era, não; era tempo de agora, que nem o nosso), um homem que acreditava. Um homem comum, que lia jornais, via TV (e sentia medo, que nem a gente), era despedido, ficava duro (que nem a gente), tentava amar, não dava certo (que nem a gente). Em tudo, o homem era assim que nem a gente. Com aquela diferença enorme: era um homem que acreditava. Nada no bolso ou nas mãos, um dia ele resolveu sair em busca do País das Fadas. E saiu.

Aconteceram milhares de coisas que não tem espaço aqui pra contar. Coisas duras, tristes, perigosas, assustadoras, O homem seguia sempre em frente. Meio de saia-justa, porque tinham dito pra ele (uns amigos najas) que mesmo chegando ao País das Fadas elas podiam simplesmente não gostar dele. E continuar invisíveis (o que era o de menos), ou até fazer maldades horríveis com o pobre. Assustado, inseguro, sozinho, cada vez mais faminto e triste, o homem que acreditava continuava caminhando. Chorava às vezes, rezava sempre. Pensava em fadas o tempo todo. E sem ninguém saber, em segredo, cada vez mais: acreditava, acreditava.

Um dia, chegou à beira de um rio lamacento e furioso, de nenhuma beleza. Alguma coisa dentro dele disse que do outro lado daquele rio ficava o País das Fadas. Ele acreditou. Procurou inutilmente um barco, não havia: o único jeito era atravessar o rio a nado. Ele não era nenhum atleta (ao contrário), mas atravessou. Chegou à outra margem exausto, mas viu uma estradinha boba e sentiu que era por ali. Também acreditou. E foi caminhando pela estradinha boba, em direção àquilo em que acreditava.

Então parou. Tão cansado estava, sentou numa pedra. E era tão bonito lá que pensou em descansar um pouco, coitado. Sem querer, dormiu. Quando abriu os olhos — quem estava pousada na pedra ao lado dele? Uma fada, é claro. Uma fadinha mínima assim do tamanho de um dedo mindinho, com asinhas transparentes e tudo a que as fadinhas têm direito. Muito encabulado, ele quis explicar que não tinha trazido quase nada e foi tirando dos bolsos tudo que lhe restava: farelos de pão, restos de papel, moedinhas. Morto de vergonha, colocou aquela miséria ao lado da fadinha.

De repente, uma porção de outras fadinhas e fadinhos (eles também existem) despencaram de todos os lados sobre os pobres presentes do homem que acreditava. Espantado, ele percebeu que todos estavam gostando muito: riam sem parar, jogavam farelos uns nos outros, rolavam as moedinhas, na maior zona. Ao toquezinho deles, tudo virava ouro. Depois de brincarem um tempão, falaram pra ele que tinham adorado os presentes. E, em troca, iam ensinar um caminho de volta bem fácil. Que podia voltar quando quisesse por aquele caminho de volta (que era também de ida) fácil, seguro, rápido. Além do mais, podia trazer junto outra pessoa: teriam muito prazer em receber alguém de que o homem que acreditava gostasse.

Era comum, que nem a gente. A única diferença é que ele era um Homem Que Acreditava.

De repente, o homem estava num barco que deslizava sob colunas enormes, esculpidas em pedras. Lindas colunas cheias de formas sobre o rio manso como um tapete mágico onde ia o barquinho no qual ele estava. Algumas fadinhas esvoaçavam em volta, brincando. Era tudo tão gostoso que ele dormiu. E acordou no mesmo lugar (o seu quarto) de onde tinha saído um dia. Era de manhã bem cedo. O homem que acreditava abriu todas as janelas para o dia azul brilhante. Respirou fundo, sorriu. Ficou pensando em quem poderia convidar para ir com ele ao País das Fadas. Alguém de que gostasse muito e também acreditasse. Sorriu ainda mais quando, sem esforço, lembrou de uma porção de gente. Esse convite agora está sempre nos olhos dele: quem acredita sabe encontrar. Não garanto que foi feliz para sempre, mas o sorriso dele era lindo quando pensou todas essas coisas — ah, disso eu não tenho a menor dúvida. E você?

O Estado de S. Paulo, 30/11/1988
Wednesday 31 March 2021 0 comments

Sombra — uma parábola

 

Sim! Embora eu caminhe pelo vale da Sombra.
Salmo de Davi

 

Vocês, que me leem, estão ainda entre os vivos, mas eu, que escrevo, desde há muito ingressei no reino das sombras. Pois, em verdade, coisas estranhas acontecerão, e coisas secretas serão reveladas, e muitos séculos decorrerão antes de os homens terem conhecimento destas memórias. E, quando o tiverem, mostrarão uns descrença, outros dúvida; poucos hão de achar sobre que refletir nas palavras aqui traçadas com pena de ferro.

Foi um ano de terror, e de sentimentos mais intensos que o terror. Sentimentos para os quais até hoje não se achou nome apropriado. Muitos prodígios e sinais haviam ocorrido; em toda parte, sobre mar e terra, a pestilência estendera suas asas negras. Para aqueles versados nos astros, não passara despercebido o aspecto mórbido dos céus. Para mim, Oinos, o grego, assim como para outros, era óbvio que ocorrera a alteração do ano 794 quando, à entrada de Áries, o planeta Júpiter põe-se em conjunção com o rubro anel do terrível Saturno. O espírito peculiar dos céus, se não me engano demais, evidenciava-se não só na órbita física da Terra, como também nas almas, nas imaginações, nas meditações da humanidade.

Ao redor de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as quatro paredes de um nobre vestíbulo numa cidade sombria chamada Ptolemais, estávamos sentados, um grupo de sete, à noite. Para nossa câmara não havia outra entrada além de alta porta de bronze, trabalhada pelo artífice Corinos. Fruto de hábil artesanato, fora aferrolhada por dentro. Cortinas negras ocultavam-nos a vista da lua, das estrelas lúridas, das ruas despovoadas, embora não excluíssem o pressentimento e a lembrança do flagelo. Havia coisas à nossa volta das quais não posso dar fiel testemunho — coisas materiais e espirituais — a atmosfera pesada — a sensação de sufocamento — ansiedade — e, sobretudo, aquela terrível condição de existência experimentada pelas pessoas nervosas, quando os sentidos estão vividamente aguçados e o poder de reflexão jaz adormecido. Um peso morto acabrunhava-nos. Oprimia nossos ombros, o mobiliário da sala, as taças de que bebíamos. Todas as coisas estavam opressas e prostradas; todas as coisas, exceto as sete lâmpadas de ferro a iluminar nossa orgia. Elevando-se em filetes de luz, queimavam pálidas e imóveis. No espelho que seu brilho formava sobre a mesa redonda de ébano, cada um de nós revia a palidez do próprio rosto, e um brilho inquieto nos olhos baixos dos demais. Mesmo assim, ríamos e nos alegrávamos de modo histérico; cantávamos as doidas canções de Anacreonte; bebíamos generosamente, embora o vinho nos recordasse o sangue. Pois, além de nós, havia outra pessoa na sala — o jovem Zoilo. Morto, deitado de comprido, ali jazia amortalhado — o gênio e o demônio da cena. Mas, ai, não participava de nossa alegria, salvo pela face, retorcida pela doença, e pelos olhos, nos quais a morte extinguira apenas a meio o fogo da pestilência, e que pareciam, face e olhos, ter por nossa diversão o mesmo interesse que têm os mortos pelas diversões dos prestes a morrer. Embora eu, Oinos, percebesse estarem os olhos do cadáver fixos em mim, ainda assim tentava ignorar-lhes a amargura e, contemplando firmemente as profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonora as canções do filho de Teios. Aos poucos, porém, acabaram-se minhas canções, e os ecos, perdendo-se por entre os negros reposteiros da sala, enfraqueceram, tornaram-se indistintos, calaram-se de todo. Mas, ai, dos mesmos reposteiros por onde se perderam os ecos das canções, emergiu uma sombra escura e indefinível — a mesma sombra que a lua, quando baixa nos céus, desenharia de um homem sobre o chão. Aquela, porém, não era sombra de homem, nem de Deus, nem de coisa alguma conhecida. Tremulando um instante nos reposteiros do quarto, estendeu-se em seguida sobre a superfície da porta de bronze. Mas a sombra era vaga, e sem forma, e indefinida, não era sombra de homem nem de Deus — nem do Deus da Grécia, nem do Deus da Caldeia, nem de qualquer Deus egípcio. E a sombra jazia sobre o brônzeo portal, sob a cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra: permanecia imóvel e muda. E a porta sobre a qual jazia a sombra, se bem me lembro, estava encostada aos pés do jovem Zoilo amortalhado. E nós, os sete ali reunidos, tendo visto a sombra sair de entre os reposteiros, não ousávamos encará-la; desviávamos os olhos, mirávamos fixamente as profundezas do espelho de ébano. Por fim, eu, Oinos, articulando algumas palavras surdas, indaguei da sombra qual era seu nome e morada. E a sombra respondeu:

— Eu sou a sombra. Minha morada fica perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies de Helusion que bordejam o canal sujo de Caronte.

E então nós, os sete, erguemo-nos de nossas cadeiras, horrorizados, trêmulos, enregelados, espavoridos. Porque o tom de voz da sombra não era o tom de voz de nenhum ser individual, mas de uma multidão de seres, e, variando de cadência, de sílaba para sílaba, ecoou confusamente aos nossos ouvidos, com os acentos familiares e inesquecíveis das vozes de milhares de amigos mortos.
 

“Shadow — A parable”, 1835

 

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O paciente improvável

 

Eles não podiam perder tempo. A fila de macas era longa e interminável, dando voltas pelos corredores. Fazia calor. Noite quente de outono.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio suava por debaixo da cebola. Cebola, era assim que ele chamava o traje que vestia todos os dias ao entrar no turno. Os colegas zombavam de seu excesso de proteção. Ele não ligava. Tirava dinheiro do próprio bolso para comprar EPIs numa pequena importadora de produtos chineses onde a namorada trabalhava. Vestia três proteções a cada turno.

⠀⠀⠀⠀⠀Já Orlando, colega de enfermaria, vestia o EPI padrão, fornecido pelo hospital, com a logomarca da prefeitura. Nesta noite de quarta-feira, ele estava virado, emendara o seu turno com o anterior, pois fora escalado para substituir Adriana, que havia sido internada com o teste positivo do vírus. Antes de vestir o EPI e iniciar a longa jornada de 24 horas, ele passou na capela do hospital para orar pela amiga.

⠀⠀⠀⠀⠀Estava com muita sede. Fazia horas que não bebia nem comia nada. Nem ia ao banheiro. Era trabalhoso fazer essas coisas vestido de vírus. Era assim que ele se achava usando aquela roupa de astronauta enquanto caminhava pela infindável fila de macas que se estendia a perder de vista pelos corredores e esquinas do 4º andar, reservado para tratar apenas de pacientes infectados com o coronavírus.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando podia avistar as nuvens de gotículas flutuando pelos corredores, se alvoroçando quando passavam macas apressadas, alçando voo como minúsculas mariposas reluzentes atraídas pelas luzes dos lustres. A morte pairava sobre todos naquele andar impiedoso, que até os elevadores temiam e gemiam ao parar.

⠀⠀⠀⠀⠀Ele fazia o sinal da cruz, respirava fundo e fechava os olhos por alguns instantes na esperança de fugir dali, mas as imagens daqueles corredores abarrotados de macas e doentes, de profissionais da saúde, muitos amigos queridos, agora irreconhecíveis em seus trajes de astronauta, aterrorizados ao enfrentar um inimigo tão sorrateiro e implacável, não lhe davam paz nem no escuro dos olhos fechados atrás da viseira e dos óculos de proteção.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio seguia com Orlando para atender a próxima maca quando sentiu o celular vibrar dentro do bolso direito da calça jeans sob os EPIs que vestia. O telefone estava inalcançável. Foi quando, sem pensar, olhou para o relógio na parede, que ainda marcava as 21h03 de algum dia quando resolveu parar logo no começo da pandemia.

⠀⠀⠀⠀⠀Novamente acontecera, como todas as noites. Lúcio estava infectado com o incurável TOC de que toda vez que olhava para a hora imóvel no relógio da parede, algum paciente pararia de viver no mesmo instante. Não importava se fossem 19h12 ou 3h38. Não. A hora real não valia. Valia o momento em que ele procurava o relógio na parede, num gesto imprevisto e incontrolável.

⠀⠀⠀⠀⠀Era um TOC sinistro que o revoltava. Ele tentava evitar, mas, num determinado momento do turno, desavisadamente, o seu olhar se desviava do trabalho e alcançava a hora misteriosamente imóvel naquele corredor. E a sentença estava dada, implacável.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando sempre percebia a aflição do colega nesse momento e imediatamente lhe assombrava a certeza inexplicável de que iria acontecer de novo.

⠀⠀⠀⠀⠀Nesta noite de quarta-feira, Lúcio virou-se para o colega de turno e se aproximou do paciente na maca da vez. Ele sabia que a escolha estava feita. Era irrecorrível.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando fez o sinal da cruz. Ajeitou a prancheta de madeira com as fichas de internação. Estava posicionando o prontuário do provável óbito, quando Lúcio recuou um passo ao ver a pessoa da maca. E disse, com a voz abafada pelas máscaras:

⠀⠀⠀⠀⠀– Ele...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando não entendeu:

⠀⠀⠀⠀⠀– Ele?

⠀⠀⠀⠀⠀Por instante, Lúcio quase se distraiu, quase levantou as viseiras e tirou os óculos ligeiramente embaçados para ver melhor o que estava diante de seus olhos.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando o viu se aproximar do rosto do paciente e o puxou para protegê-lo, pois o procedimento impedia chegar tão perto dos infectados.

⠀⠀⠀⠀⠀Afastou o colega para cobrir a cabeça do paciente, como sempre ocorria em caso de óbito. Mais uma vez a hora imóvel havia sido implacável.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando sempre fazia uma breve e sincera oração para o falecido antes de seguir para a próxima maca. Com maior tristeza e pesar para aqueles que a implacável hora imóvel do relógio ceifava sem piedade. Não queria entender como isso acontecia, nem ninguém no andar sabia que isso acontecia. Só ocorria no turno deles, só com eles. Eram tantas mortes naquela infindável fila, que mais uma, mesmo que por um capricho misterioso e cruel, não faria diferença alguma nos gráficos do governo e nas notícias dos jornais.

⠀⠀⠀⠀⠀Ele despertou da reza com um leve cutucão de Lúcio, que puxara o lençol do rosto do paciente.

⠀⠀⠀⠀⠀Ele se aproximou de Orlando. Como se quisesse contar um segredo ao colega, sussurrou perto do ouvido tapado pela toca de proteção:

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele... E ele ainda respira...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando soltou as mãos, fez o sinal da cruz e fitou o rosto do homem na maca. Por um instante desconfiou que pudesse ser alguém conhecido, mas balançou levemente a cabeça, dando de ombros.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio insistiu, apontando:

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele, ele... É ele, sim... Só pode ser ele...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando desdenhou com um sorriso que se desenhou na máscara. Olhou para Lúcio e depois para o homem na maca. Chegou mais perto. Recuou assustado, mas incrédulo:

⠀⠀⠀⠀⠀– Parece...

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele. Ele, sim. E está vivo. Com vida.

⠀⠀⠀⠀⠀– Você tá louco!

⠀⠀⠀⠀⠀– Tenho certeza.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando voltou a olhar o rosto do paciente, sem tocá-lo, a uma distância segura. Quis coçar o nariz como sempre faz quando fica intrigado, a viseira não permitiu.

⠀⠀⠀⠀⠀– Não pode ser... Ele, aqui, num hospital público colapsado, nesta fila insana e interminável de pacientes infectados em macas esperando por uma vaga impossível na UTI.

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele, sim! – insistiu Lúcio.

⠀⠀⠀⠀⠀– A facada! – quase gritou Orlando, puxando o lençol que cobria a barriga do paciente.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio entendeu na hora. Tratou de ajudar o colega. Levantaram a camiseta verde com estampa de um time de futebol. Lá estava ela, a famosa cicatriz no abdômen. Apesar das luvas, Lúcio chegou a sentir as aderências sob o remendo.

⠀⠀⠀⠀⠀Entreolharam-se, perplexos, assustados.

⠀⠀⠀⠀⠀– Quem o trouxe pra cá? Como ele chegou aqui? É uma pegadinha? Só pode ser... – duvidou Orlando, olhando para os lados, para cima, embaixo da maca.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio pegou o prontuário pendurado na maca:

⠀⠀⠀⠀⠀– Nome: Não identificado. Documento: Nenhum. Idade: 74 anos (estimada). Endereço: Ignorado. Grupo de risco: Sim. Comorbidades: Nenhuma informação. Procedimentos primários: Passou pela triagem, desacordado. Sintomas: Covid-19 / tosse seca, febre alta e falta de ar. Observações: Provavelmente abandonado na porta do PS ou chegou sozinho e desmaiou na entrada do hospital. Classificação na fila: Pulseira preta, 127.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando puxou o braço esquerdo do paciente para fora e confirmou a cor da pulseira.

⠀⠀⠀⠀⠀– O que vamos fazer? – quis saber Lúcio, olhando para os lados e vendo o hospital mergulhado num atendimento incessante, frenético e estressante. – Veja! Ele é o número 127! Deveriam ter passado na frente!

⠀⠀⠀⠀⠀– Na frente? – estranhou Orlando.

⠀⠀⠀⠀⠀– Claro! Se ele é ele, sim, tem preferência... Vai morrer na fila se não for...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando interrompeu o amigo:

⠀⠀⠀⠀⠀– Lúcio, aqui, no 4º andar, todos morrem ou vão morrer na fila esperando uma vaga na UTI. Se ele é ele, como veio parar aqui? Ele não sabia o que tá acontecendo nos hospitais públicos? 

⠀⠀⠀⠀⠀– Mas ele recebeu pulseira preta na triagem. Não vai sobreviver – disse Lúcio enquanto olhou com assombro a hora imóvel na parede.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando tratou de descer a camiseta do paciente, tapando a cicatriz e depois o cobrindo com o lençol.

⠀⠀⠀⠀⠀– Temos que fazer alguma coisa – insistiu Lúcio, ameaçando puxar a maca da fila.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando o conteve:

⠀⠀⠀⠀⠀– Não dá pra fazer mais nada. Já vou reservar um lugar para ele no contêiner refrigerado.

⠀⠀⠀⠀⠀– Será enterrado numa cova rasa, como indigente – observou Lúcio, ainda segurando a maca, insistindo para tirá-la da fila.

⠀⠀⠀⠀⠀O colega apontou os corredores:

⠀⠀⠀⠀⠀– Vai furar a fila? Olhe! Não para de chegar macas com infectados graves... Estamos atrasando o nosso trabalho. Quem tem pulseira preta fica onde tá, esperando a vez...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando repassou cada informação no prontuário do paciente pendurado na maca. Estava inconformado:

⠀⠀⠀⠀⠀– Só pode ser uma pegadinha... Só pode... Ele aqui! Aqui! – seu olhar se perdeu entre os corredores infectados.

⠀⠀⠀⠀⠀Aí pegou a sua prancheta e demonstrou a intenção de seguir para o próximo paciente.

⠀⠀⠀⠀⠀– Vai deixá-lo aí? – quis saber Lúcio, inconformado.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando não respondeu. Avançou para a próxima maca. Viu o número e anotou na folha: 128. Era uma pulseira verde, rara. Ele chegou a sorrir, aliviado.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio o puxou. Apontou o paciente:

⠀⠀⠀⠀⠀– Orlando, é ele sim! É ele!

⠀⠀⠀⠀⠀– Não deve ser. É alguém parecido. Temos que continuar. Olha. Já tá começando fila dupla. Hoje é o décimo quarto dia depois daquela manifestação com todos juntos, próximos, sem máscara, berrando, espalhando gotículas... Lembra? Já sabíamos das incontáveis mortes anunciadas.

⠀⠀⠀⠀⠀– Mas ele... Ele não vai sobreviver...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando encarou o amigo e disse, quase soletrando as palavras:

⠀⠀⠀⠀⠀– Como todos nesta maldita e interminável fila filha da puta!

⠀⠀⠀⠀⠀– Mas é ele. É ele sim...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando fez um gesto brusco com a mão, tapando parte da viseira de Lúcio:

⠀⠀⠀⠀⠀– Ele não é ele. Vou repetir, Lúcio... Ninguém o deixaria aqui numa fila de macas aguardando vaga na UTI de um hospital público colapsado. Ninguém! Trata-se de alguém parecido com ele. Uma trágica e absurda coincidência.

⠀⠀⠀⠀⠀Algo na TV ligada na primeira esquina do andar chamou a atenção de Lúcio. Caminhou até ela. Puxou o colega. Aumentou o som.

⠀⠀⠀⠀⠀A bordo de um helicóptero, um canal de notícias cobria uma manifestação. A jornalista relatava o que via:

⠀⠀⠀⠀⠀– No meio da pandemia, agravada com uma subida incontrolável e vertiginosa de infectados, internações, filas imensas e intermináveis por uma vaga na UTI ou mesmo por uma cova nos cemitérios, uma multidão se aglomerou na capital exigindo o fim do isolamento social e da quarentena. Já não é mais possível vê-lo entre os manifestantes que ousaram sair de casa nesta quarta-feira. Ele simplesmente desapareceu devorado pela multidão alucinada, entre selfies, abraços, apertos de mãos e bandeiras.

⠀⠀⠀⠀⠀Os dois voltaram correndo para a maca.

⠀⠀⠀⠀⠀Encontraram uma velhinha que sorriu para eles, feliz, como se tivesse despertado de um sonho.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio olhou para o relógio. Ele voltara a pulsar. O ponteiro dos segundos se aproximava para completar uma volta.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando despertou do espanto com gritos atropelando-o, pedindo passagem. Eram enfermeiros e enfermeiras eufóricos e barulhentos voltando da UTI, empurrando macas com pacientes curados, sorridentes e felizes.

⠀⠀⠀⠀⠀Pacientes desciam das macas e seguiam sem dor e aliviados para os braços de parentes e amigos que invadiam o andar.

⠀⠀⠀⠀⠀A velhinha da maca 127 se aproximou de Lúcio e o beijou na viseira.

 



Alonso Alvarez nasceu e mora em São Paulo e é escritor, artista gráfico e editor. No Grupo Companhia das Letras, participou da antologia Haicais tropicais (2018).

 

Monday 29 March 2021 0 comments

Conto de escola

 

A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.

Na semana anterior tinha feito dous suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.

Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinquenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos.

— Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.

Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinquenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.

— O que é que você quer?

— Logo, respondeu ele com voz trêmula.

Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.

Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma cousa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.

— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.

— Não diga isso, murmurou ele.

Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma cousa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.

— Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.

— Que é?

— Você...

— Você quê?

Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma cousa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.

Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...

— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.

— Então agora...

— Papai está olhando.

Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as ideias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.

No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.

— Sabe o que tenho aqui?

— Não.

— Uma pratinha que mamãe me deu.

— Hoje?

— Não, no outro dia, quando fiz anos...

— Pratinha de verdade?

— De verdade.

Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dous tostões, não me lembro; mas era uma moeda, e tal moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.

— Mas então você fica sem ela?

— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?

Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...

Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma ideia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.

Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a cousa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes, mas parece que era lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria, — e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal, — parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor, — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma cousa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...

Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais, lendo com fogo, com indignação...

— Tome, tome...

Relancei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo.

— Dê cá...

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.

De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.

— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.

— Diga-me isto só, murmurou ele.

Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tornei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.

— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.

Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.

— Venha cá! bradou o mestre.

Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.

— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? Disse-me o Policarpo.

— Eu...

— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.

Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de cousas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.

— Perdão, seu mestre... solucei eu.

— Não há perdão! Dê cá a mão! Dê cá! Vamos! Sem-vergonha! Dê cá a mão!

— Mas, seu mestre...

— Olhe que é pior!

Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma cousa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!

Eu, por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dous serem cinco.

Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma cousa?

" Tu me pagas! tão duro como osso!" dizia eu comigo.

Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua larga São Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.

Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dous meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...

De manhã, acordei cedo. A ideia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...

Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma cousa:

Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
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