Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À
medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem
simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta
aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil
cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore.
Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e
desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os
próprios sapatos.
- Vejam que lama. Só mesmo você inventaria
um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive que descer do
táxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse vestida
esportivamente e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava comigo,
usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você me
fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um
cigarro.
– Hem?!
- Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo braço
rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma
agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha que ver uma
vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal?
- Podia ter escolhido outro lugar, não? –
Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro arruinado.
Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e
mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as
criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças
rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do
companheiro. Sorriu.
– Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o
programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente está
enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo
do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E
vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…Fabuloso,
fabuloso!…Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir
de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para
ver o pôr do sol num cemitério…
Ele riu também, afetando encabulamento
como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim
comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas
fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão
horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura…
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria, você
está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa
rua afastada…- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as
pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se
formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se
aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como
aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio.
Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento
–Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa… E não
podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se
entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber
formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode
haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele
apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é
ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos,
então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a
vida.
- Mas me lembrei deste lugar justamente
porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do
que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele,
abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram.
– Jamais seu amigo ou um amigo do seu
amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse . Não
insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto
enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel,
quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é
enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode
me dar o braço, não tenha medo…
O mato rasteiro dominava tudo. E, não
satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas
sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas
de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida
cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente
pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como
uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os
pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às
vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos
medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi
um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do
cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.
- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde!
Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da
manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa
ambiguidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E
ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a este
seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito
engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa
viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente,
meu caro…
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na
mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A
fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo
o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear
de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem, ela
retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã…Mas,
apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra
que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto, imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das
Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você
está lendo agora. Hem?
- Nenhum – respondeu ela, franzindo os
lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha
querida esposa, eternas saudades – leu em voz baixa. Fez um muxoxo.
- Pois sim. Durou pouco essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro
ressequido.
- Mas é esse abandono na morte que faz o
encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida
intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha
brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por
cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas…Esta a morte perfeita,
nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que já
me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como
você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face.
– Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos…
- Mas este cemitério não acaba mais, já
andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou
ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que
feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o
jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela
cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha
prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer
flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha
priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos
planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze
anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim verdes como
os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como
vocês duas…Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim
meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura que…-
Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e
depois devolveu-o.
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda. Percebe
agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um
grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus
mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de
alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de
cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz
invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas
goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma
toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam
um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois
triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém
colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma
portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol
para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando
roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais
você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta de
poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar tudo
limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo neste
cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro
mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das
enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os
gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito
retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas
gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e
desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando
firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la.
– A cômoda de pedra. Não é grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela
inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o
retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui
ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão
esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um
ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio. Suba e
vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos
gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão
frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me até
do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer…
Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou
bonita?…- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse
bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos
iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para
não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro, não
estou enxergando…
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à
companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem…-
Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que
é uma moça…
Antes da chama se apagar, aproximou-a da
inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.
- Maria Emília, nascida em vinte de maio
de mil oitocentos e falecida…- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel
– Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…
Um baque metálico decepou-lhe a palavra
pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada.
No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu
sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua família,
seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a
escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a tocar
o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da
fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos,
imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira,
você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses.
Brincadeira mais estúpida!
- Uma réstia de sol vai entrar pela
frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando
devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre
imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda,
agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos
cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso.
– Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas
agora preciso ir mesmo, vamos, abra…
Ele já não sorria. Estava sério, os olhos
diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!… –
gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.-
Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura
nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de
ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava
pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem
cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não…
Voltado ainda para ela, ele chegara até a
porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao outro,
como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão
embrutecida.
- Não…
Guardando a chave no bolso, ele retomou o
caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando
úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os
gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado.
Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das
profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao
poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora
qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao
longe brincavam de roda.
Lygia Fagundes Telles In:.Antes do Baile Verde.
Alguma
coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito
de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa
estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você,
para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender
o que tento dizer.
É
com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira
literária de dizer que escrever significa mexer com funduras — como Clarice,
feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e
veias e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos
que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de
fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das
quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar.
Dói
muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de melhor posso
oferecer a você e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso que poderá me
matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos
talvez.
Por
enquanto, ainda estou um pouco dentro daquela coisa estranha que em aconteceu.
É tão impreciso chamá-la assim, a Coisa Estranha. Mas o que teria sido? Uma
turvação, uma vertigem. Uma voragem, gosto dessa palavra que gira como um
labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações nos seus círculos cada vez mais
velozes, concêntricos, elípticos. Foi algo assim que aconteceu na minha mente,
sem que eu tivesse controle algum sobre o final magnético dos círculos içando o
início de outros para que tudo recomeçasse. Todos foram discretos, depois, e eu
também não fiz muitas perguntas, igualmente discreto. Devo ter gritado, e
falado coisas aparentemente sem sentido, e jogado coisas para todos os lados,
talvez batido em pessoas.
Disso
que me aconteceu, lembro só de fragmentos tão descontínuos que. Que — não há
nada depois desse que dos fragmentos — descontínuos. Mas havia a maca de metal
com ganchos que se fechavam feito garras em torno do corpo da pessoa, e meus
dois pulsos amarrados com força nesses ganchos metálicos. Eu tinha os pés nus
na madrugada fria, eu gritava por meias, pelo amor de Deus, por tudo o que é
mais sagrado, eu queria um par de meias para cobrir meus pés. Embora amarrado
como um bicho na maca de metal, eu queria proteger meus pés. Houve depois a
máquina redonda feita uma nave espacial onde enfiaram meu cérebro para ver tudo
que se passava dentro dele. E viram, mas não me disseram nada.
Agora
vejo construções brancas e frias além das grades deste lugar onde me encontro.
Não sei o que virá depois deste agora que é um momento após a Coisa Estranha, a
turvação que desabou sobre mim. Sei que você não compreende o que digo, mas
compreenda que eu também não compreendo. Minha única preocupação é conseguir
escrever estas palavras — e elas doem, uma por uma — para depois passá-las,
disfarçando, para o bolso de um desses que costumam vir no meio da tarde. E que
são doces, com suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de levar esta
carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de onde estou daquelas
construções brancas, frias.
Tenho
medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não sejam maus,
talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como eles são, a
maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa
Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever — essa é a certeza que te
envio, se conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta bem, vou
repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever,
a única coisa que posso fazer é escrever.
Uma noite,
há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha boca. De
que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada custei reconhecer o quarto da
nova casa em que estava morando e não conseguia me lembrar como havia chegado
até ali. E a insistente pergunta, martelando, martelando... De que cor eram os
olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso
dizer. Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos
de minha mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo,
naquela noite se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom
acusatório. Então, eu não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?
Sendo a primeira de sete
filhas, desde cedo, busquei dar conta de minhas próprias dificuldades, cresci
rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de minha mãe
aprendi conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades, como
também sabia reconhecer em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias.
Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de
que cor seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava
nitidamente de vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo
mindinho do pé esquerdo... Da verruga que se perdia no meio da cabeleira crespa
e bela... Um dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava
quando, deixando por uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens
alheias, se tornava uma grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma
bolinha escondida bem no couro cabeludo ela. Pensamos que fosse carrapato. A
mãe cochilava e uma de minhas irmãs aflita, querendo livrar a boneca-mãe
daquele padecer, puxou rápido o bichinho. A mãe e nós rimos e rimos e rimos de
nosso engano. A mãe riu tanto das lágrimas escorrerem. Mas, de que cor eram os
olhos dela?
Eu me lembrava também de
algumas histórias da infância de minha mãe. Ela havia nascido em um lugar
perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas até bem grandinhas.
As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam roupas antes dos
meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe confundiam-se com as
de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes, quando a mãe
cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse ali, apenas o
nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária que
fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago,
ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de
comida. E era justamente nos dias de parco ou nenhum alimento que ela mais
brincava com as filhas. Nessas ocasiões a brincadeira preferida era aquela em
que a mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno
banquinho de madeira. Felizes colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço
de terra que circundava o nosso barraco. Aquelas flores eram depois solenemente
distribuídas por seus cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos
reverências à Senhora. Postávamos deitadas no chão e batíamos cabeça para a
Rainha. Nós, princesas, em volta dela, cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe
só ria, de uma maneira triste e com um sorriso molhado... Mas de que cor eram os
olhos de minha mãe? Eu sabia, desde aquela época, que a mãe inventava esse e
outros jogos para distrair a nossa fome. E a nossa fome se distraía.
Às vezes, no final da
tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se assentava na soleira da
porta e juntas ficávamos contemplando as artes das nuvens no céu. Umas viravam
carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormecidos, e havia
aquelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então, espichava o braço que
ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na
boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem
derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor
eram os olhos de minha mãe?
Lembro-me ainda do temor
de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela
nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto balbuciava rezas
a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu
não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva... Sei que tudo
me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos
os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava!
Chorava, chovia! Então, porque eu não conseguia lembrar a cor dos olhos dela?
E naquela noite a
pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu estava fora de minha
cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição de vida para mim
e para minha família: ela e minhas irmãs que tinham ficado para trás. Mas eu
nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida, não
só dela, mas de minhas tias e todas a mulheres de minha família. E também, já
naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas nossas ancestrais, que desde
a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e
sangue. Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas
sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe?
E foi então que, tomada
pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam os olhos de minha mãe,
naquele momento, resolvi deixar tudo e, no outro dia, voltar à cidade em que
nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no dela, para
nunca mais esquecer a cor de seus olhos.
E assim fiz. Voltei,
aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um ritual, em que a
oferenda aos Orixás deveria ser descoberta da cor dos olhos de minha mãe.
E quando, após longos
dias de viagem para chegar à minha terra, pude contemplar extasiada os olhos de
minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e
lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas, eram tantas lágrimas, que eu me
perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face? E só então
compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso,
prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor
de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos
para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei
meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas delas se misturarem às
minhas.
Hoje, quando já alcancei
a cor dos olhos de minha mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha.
Faço a brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos da outra. E
um dia desses me surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas
estávamos nesse doce jogo, ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas
tão baixinho como se fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse
buscando e encontrando a revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu
escutei, quando, sussurrando minha filha falou:
Mãe, qual é a cor tão
úmida de seus olhos?
(Olhos
d’água, p. 15-19)
O espírito do povo de mil anos atrás está aqui.
A terra, colinas e
montanhas têm vida dentro de si.
O chão onde pisamos tem
vida dentro de si.
Todas as nações chamam a
terra de Mãe Natureza.
Nossos antepassados nos
ensinaram a respeitar a terra, a tomar conta dela. Em troca, ela tomará conta
de nós.
Nossas forças derivam da
terra.
Estamos muito perto da
lua.
Muito perto do sol.
Estamos muito perto da
terra, da feminilidade da Mãe Terra.
Quando pensamos a
respeito dessas coisas, nos tornamos parte delas e elas se tornam parte de nós.
Oramos para a terra,
oramos para o céu, as nuvens, a chuva e a relva porque acreditamos que todas
essas coisas têm espírito. Até as pedras têm vida.
Antes de sair para
caçar, a coisa mais importante a fazer é rezar para a Mãe Natureza, para o céu
e, então, para o animal. Depois, chorar um pouco e pedir à Mãe Naturezaa que
nos forneça alguma carne. Quando entrar na floresta, você tem de ser o animal a
ser caçado.
Aqui, necessitamos de
chuva. É para ela que rezamos. É por isso que dançamos. Quando sair em busca de
comida, temos de agradecer por essas coisas estarem nas colinas, plantadas pelo
Criador.
As montanhas têm
espírito. As montanhas são sagradas. Lá há paz e fé.
As nuvens que circundam
são atraídas por elas. Há vida lá em cima.
Devemos adorar a terra, as
estrelas e o céu, pois eles têm espírito.
São os poderosos
espíritos que nos guiam, que nos ajudam a sobreviver.
Muito conhecimento
deriva da família. Ainda tentamos perpetuar esta tradição. Eu, por exemplo,
tento perpetuar as tradições do meu clã.
O clã que vive ao nosso
redor, que está aqui para proteger a minha família. Eu perpetuo e levo adiante
esta tradição. Ainda sou um guerreiro.
Sou um guerreiro porque
reivindico por meu povo e falo em seu nome.
Rogamos por nossas
crianças como rogamos pelas árvores.
Uma coisa que minha avó
me ensinou é que, sem família, não somos nada. Ela me ensinou a proteger toda a
minha família. E não é muito fácil hoje em dia ensinar isso para gente mais
jovem. Não sei se minha filha mais velha me defenderá quando eu precisar dela,
como agora eu defendo minha mãe.
As famílias são muito
importantes. Caso não existissem, haveria muita gente perdida. Sinto-me um
pouco perdido. Quando desejo encontrar a minha identidade, geralmente tenho de
ir a um museu para ver como as coisas eram quando meus pais eram jovens.
Nascemos com esse espírito, mas é nossa responsabilidade desenvolvê-lo de modo
que tenhamos orgulho de dizer: “Sou um Hopi” ou “Sou um Navajo”. É uma
tradição. Uma linguagem. Uma identidade.
Também estamos
envolvidos com o mundo animal, com o mundo vegetal e com o cosmos. A lição
fundamental é que devemos compreender isso e viver em harmonia com a terra e
todas as coisas que a habitam. É uma crença simples. É isso que faz os Hopi
serem fortes.
Tarde da noite. Começam
os cânticos.
Cantamos a respeito do
vento, das nuvens e das chuvas que alimentam o povo.
Quando morremos, vamos
para o Ocidente, vamos para a luz.
É um lugar poderoso para
começar e um lugar muito poderoso para terminar nossa existência. A terra tem
vida. A terra respira. A terra pode falar.
Certo dia, olhando as
nuvens, vimos uma dançarina de longos cabelos.
Em primeiro lugar, somos
artistas porque queremos criar. Depois, porque somos índios. Exprimimos nossa
cultura dessa forma. A arte que vemos nos índios é a espiritualidade,
agradecendo ao criador tudo aquilo que ele fez.
Haverá estradas no céu.
Usaremos caixas com rodas para nos locomover. Essas eram as coisas que
profetizávamoso quando éramos jovens. E pensávamos: como seria lá em cima, onde
as estradas seriam construídas? E aí estão elas, hoje. Pessoas lá em cima,
voando como pássaros.
Hoje reivindicamos
muitas coisas como se fossem nossas.
A terra não é nossa.
A vida não é nossa.
A língua não é nossa.
Alguém criou isso tudo?
Quando fomos para a
escola, o intérprete disse: “Esqueçam sua língua hualapai. Esqueçam a comida
indígena. Esqueçam suas histórias, os nomes das montanhas e rios. Acima de tudo
esqueçam sua língua. Falem apenas em inglês.”
Entretanto, mantemos os
princípios de nossa tradição em nossos corações. É algo que nos dá muito
orgulho dizer: “Aqui está algo que nos pertence. Eis ai a minha língua, assim
foi escrito, é isso que significa”.
Passamos maus momentos
na escola. Queríamos aprender a respeito das cobras e lagartos e tartarugas.
Então descobrimos que estávamos envolvidos em dois mundos diferentes. Tivemos
muito trabalho ao tentar ajustar-nos a esses dois mundos, tentando misturá-los.
Não se pode aprender alguma coisa sem abrir mão de outra. Há muita gente
criativa na reserva. Eles estão em uma situação paradoxal. Aderem aos valores
de seus avós para estar de acordo consigo mesmos e com o meio ambiente. Mas,
quando se trata de conseguir um emprego, não estão qualificados para tanto.
Esse sistema de valores
segue em uma direção e os outros valores vêm na direção oposta. Devemos dizer
aos jovens indígenas que há um lugar intermediário. Nem tanto para cá, mas
exatamente no meio, entre pares opostos.
Harvey Lloyd (Ancião
Nativo da Tribo Hopi do Arizona).
Uma história de fadas
Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...