Alguma
coisa aconteceu comigo. Alguma coisa tão estranha que ainda não aprendi o jeito
de falar claramente sobre ela. Quando souber finalmente o que foi, essa coisa
estranha, saberei também esse jeito. Então serei claro, prometo. Para você,
para mim mesmo. Como sempre tentei ser. Mas por enquanto, e por favor, tente entender
o que tento dizer.
É
com terrível esforço que te escrevo. E isso agora não é mais apenas uma maneira
literária de dizer que escrever significa mexer com funduras — como Clarice,
feito Pessoa. Em Carson McCullers doía fisicamente, no corpo feito de carne e
veias e músculos. Pois é no corpo que escrever me dói agora. Nestas duas mãos
que você não vê sobre o teclado, com suas veias inchadas, feridas, cheias de
fios e tubos plásticos ligados a agulhas enfiadas nas veias para dentro das
quais escorrem líquidos que, dizem, vão me salvar.
Dói
muito, mas eu não vou parar. A minha não-desistência é o que de melhor posso
oferecer a você e a mim neste momento. Pois isso, saiba, isso que poderá me
matar, eu sei, é a única coisa que poderá me salvar. Um dia entenderemos
talvez.
Por
enquanto, ainda estou um pouco dentro daquela coisa estranha que em aconteceu.
É tão impreciso chamá-la assim, a Coisa Estranha. Mas o que teria sido? Uma
turvação, uma vertigem. Uma voragem, gosto dessa palavra que gira como um
labirinto vivo, arrastando pensamentos e ações nos seus círculos cada vez mais
velozes, concêntricos, elípticos. Foi algo assim que aconteceu na minha mente,
sem que eu tivesse controle algum sobre o final magnético dos círculos içando o
início de outros para que tudo recomeçasse. Todos foram discretos, depois, e eu
também não fiz muitas perguntas, igualmente discreto. Devo ter gritado, e
falado coisas aparentemente sem sentido, e jogado coisas para todos os lados,
talvez batido em pessoas.
Disso
que me aconteceu, lembro só de fragmentos tão descontínuos que. Que — não há
nada depois desse que dos fragmentos — descontínuos. Mas havia a maca de metal
com ganchos que se fechavam feito garras em torno do corpo da pessoa, e meus
dois pulsos amarrados com força nesses ganchos metálicos. Eu tinha os pés nus
na madrugada fria, eu gritava por meias, pelo amor de Deus, por tudo o que é
mais sagrado, eu queria um par de meias para cobrir meus pés. Embora amarrado
como um bicho na maca de metal, eu queria proteger meus pés. Houve depois a
máquina redonda feita uma nave espacial onde enfiaram meu cérebro para ver tudo
que se passava dentro dele. E viram, mas não me disseram nada.
Agora
vejo construções brancas e frias além das grades deste lugar onde me encontro.
Não sei o que virá depois deste agora que é um momento após a Coisa Estranha, a
turvação que desabou sobre mim. Sei que você não compreende o que digo, mas
compreenda que eu também não compreendo. Minha única preocupação é conseguir
escrever estas palavras — e elas doem, uma por uma — para depois passá-las,
disfarçando, para o bolso de um desses que costumam vir no meio da tarde. E que
são doces, com suas maçãs, suas revistas. Acho que serão capazes de levar esta
carta até depois dos muros que vejo a separar as grades de onde estou daquelas
construções brancas, frias.
Tenho
medo é desses outros que querem abrir minhas veias. Talvez não sejam maus,
talvez eu apenas não tenha compreendido ainda a maneira como eles são, a
maneira como tudo é ou tornou-se, inclusive eu mesmo, depois da imensa
Turvação. A única coisa que posso fazer é escrever — essa é a certeza que te
envio, se conseguir passar esta carta para além dos muros. Escuta bem, vou
repetir no teu ouvido, muitas vezes: a única coisa que posso fazer é escrever,
a única coisa que posso fazer é escrever.
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