Tuesday 19 December 2017

Bodas de barro

Hoje eu acordei mais cedo do que deveria, pois seria nosso aniversário de casamento, amor.
Completaríamos oito anos juntos.
Percorro os cômodos, vasculhando tudo o que foi ingrediente para o que chamávamos de “nosso lar” e noto
que
tudo
está
exatamente
do mesmo jeito ao dia anterior da sua despedida:
um velho abajur de mesa esmaltado sob um criado mudo, que de tão mudo,
assistiu a toda nossa intimidade calado, sem nos recriminar;
um porta-retratos de tamanho considerável com a imagem de um abraço nosso
sob o cenário de um lindo pôr do sol à beira mar;
um espelho oval em que todas as manhãs percebo os imensos sulcos que inevitavelmente se multiplicaram em meu rosto somente nesse último ano.
Não sei como suportei viver sem os braços fortes a me abraçarem
e suas mãos hábeis que me acariciavam por inteira,
fazendo-me estremecer dos pés à cabeça...
Não sei o que fiz com o café,
Ah, o café que você saboreava enquanto me falava sobre seus planos,
ousados planos que ainda hoje se fazem presentes em minhas retinas:
Uma viagem ao interior do interior,
ao mais pacato dos recantos, 
lugar onde nunca ousamos ir (por medo ou receio do abandono).
E, dizendo essas tolices, seus olhos brilhavam e tragavam minha juventude para dentro de ti, convidando-me ao delírio das horas de descuido,
inexoráveis horas que o tempo insiste em devorar segundo a segundo,
Minuto a minuto,
Num ritmo lento-saboroso, mas ao mesmo tempo atroz.
Levanto e me dirijo ao banheiro onde tantas vezes eu chorei de alegria
por ter finalmente encontrado a felicidade na segurança do seu abraço.
O banho revigora minhas energias,
sinto-me renascida para o mundo-mundo, eterna morada dessas almas errantes.
Coloco aquele vistoso vestido longo
de estampa floral,
presente que você me deu em nosso último aniversário de casamento.
Gosto de me admirar defronte ao espelho oval,
contemplando meus ombros desnudos e
de como você os acariciava sempre que tinha oportunidade,
sussurrando em meu ouvido “segredos de liquidificador”.
Eu, cheia de vaidade,
Deixava-me levar nesse doce embalo
valsando
rodopiando no ar
feito bailarina!
Lembra, amor? Das danças?
Das incontáveis danças em que, cúmplices,
nos entregávamos  um ao outro,
como se nossas almas após séculos e séculos distantes,
aproveitassem cada instante para se encontrar onde a mente de muitos não conseguem chegar?
Exaurido, você sempre me pedia uma trégua para respirar um ar
e fumar um cigarro.
Cada vez que saía pra respirar, esticava o tempo.
De propósito.
Como se evitasse a presença do meu corpo em seus braços...
Soube, tempos depois, que não haveria mais dança alguma em nossas vidas.
Deus, como esquecer aquele dia, aquele fatídico dia em que me presenteou com um vinil do Chico Buarque...
Não há nenhuma vitrola aqui perto,
Mas dentro a canção continua rasgando-me por inteiro..
“- Quando você me deixou, meu bem/
me disse pra ser feliz, e passar bem/
quis morrer de ciúmes, quase enlouqueci/
mas depois como era de costume, obedeci...”
Mal sabia que eu seria a protagonista desses versos por seis longos meses.
No dia de sua despedida,
não houve briga, não houve discussão, não houve nada.
Entre mim e ti, um abismo se abriu, onde eu mergulhei fundo e quase não voltei.
A mala, os olhos úmidos, a respiração ofegante – todas as palavras foram suprimidas do meu dicionário.
Alguns porquês, por mais necessárias que sejam as explicações,
merecem a paga do silêncio.
O tempo, ainda que devagar, encarrega-se da missão de transformar tudo em tempo.
As lembranças transformam-se em tempo.
As conversas francas, os beijos afetuosos, as intimidades de casal:
tudo se transforma em tempo.
Tempo que nos traga ou tempo que nos liberta...
Hoje, dia em que completaríamos oito anos, outros versos da canção então encontram minha voz...
“quando você me quiser rever/
já vai me encontrar refeita, pode crer/
olhos nos olhos, quero ver o que você faz/
ao sentir que sem você eu passo bem demais/
E que venho até remoçando/
me pego cantando/
sem mas nem porque..”
Bebo um a um esses últimos versos e ergo a cabeça,
descerro as cortinas, abro bem as janelas
e sorvo o ar da manhã como quem estivesse há muito tempo presa em cárcere privado.
Borboletas invadem meu estômago.
É hora de vencer a resistência dos dias
e voar.
A casa estará sempre aberta, amor.
Mas o coração,
Ah, o coração já não te pertence mais.

1 comments:

Anonymous said...

Você se saiu muito bem com a experiência de morar sozinho, acredito que se preparou para dividir a vida a dois. Amei ler seu relato e ler sua experiência compartilhada aqui.

Post a Comment

Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
;