Saturday 25 April 2020 0 comments

Nunca gostei de ser índio


Nasci com cara de índio, dizem. Mas, só soube disso depois. Colegas de escolas assim me definiram tão logo me viram chegando com um uniforme apertado fazendo conjunto com um short e um sapato com número menor que meu pé.

Foi uma experiência muito estranha para mim, que me deixou um pouco doido da cabeça, meio traumatizado. É que eu cresci em uma pequena comunidade no interior do Pará. Era uma aldeia, mas lá ninguém se apelidava de índio. Todos tínhamos nome, sobrenome, parentesco, amigos e animais de estimação. O que não tinha era energia elétrica e por isso a vida começava cedo, para aproveitar bem a luminosidade do sol.
Aprendi, com isso, a respeitar a natureza desde que era menino. Aprendi a olhar para o tempo e reconhecer suas mensagens: chuva, sol quente, tempestade, frio, lua cheia ou minguante. Aprendi a respeitar os passos dos outros seres e a não fazer xixi no igarapé. Aprendi caçar calangos usando armadilhas ou tacape e a flechar pequenos animais a uma distância segura. Também aprendi a tomar banho de chuva, nadar com desenvoltura, esculpir meus brinquedos nas taquaras e caroços de manga e andar na mata sempre atento aos sinais de perigo.
Apesar de tudo o que sabia, de escola e de amizade confusa nada sabia. Por isso, me zanguei quando minha mãe me obrigou a colocar a tal farda para ir à escola. 
– É para você aprender coisas novas – ela disse. 
– É para você crescer inteligente – meu pai disse. 
– É para você saber mais que nós – meu tio disse. 
– É para você ficar civilizado – meu irmão mais velho ironizou.
Quem não disse nada foi meu avô, que ficou olhando de longe um tanto desconfiado. Observou tudo o que estava acontecendo e depois riu da roupa que eu estava usando. Não foi um riso de deboche, mas eu senti como se fosse. Depois compreendi o que se passou na cabeça dele. Ele sabia o que eu iria passar.
De qualquer maneira, eu estava animado para aquele momento. Muito já ouvira sobre a escola do branco e me passava pela cabeça uma vontade grande de conhecê-la. E foi com esse espírito que aceitei usar aquela farda feia e aqueles sapatos que apertavam meus pés que, antes, eram livres inclusive do mau cheiro que depois eu senti.
Cheguei à escola bem motivado. Meus pés apertados me faziam andar meio torto. Adentrei no prédio disposto a aprender as coisas dos brancos. Logo de cara me deparei com um grupo de colegas. Todos eram um pouco parecidos comigo e senti que poderiam ser meus amigos. Fiquei feliz. No entanto, quando fui me aproximando do local, um deles apontou o dedo para mim e gritou: 
– Olha o índio que chegou na nossa escola!!! Olha o índio!
Vou dizer uma coisa e posso até jurar: eu fiquei olhando para todas as partes procurando o tal índio! Achei que era um passarinho que eu não conhecia! Quando eles viram que eu não sabia do que falavam, começaram a rir de mim. Eles acharam que eu era burro ou coisa parecida. Só depois é que me dei conta de que eles falavam de mim.
Pode parecer estranho, mas aquela palavra índio eu não conhecia. Eu não sabia que existia alguém que se chamava índio. Meus pais nunca me chamaram assim; meus irmãos também não; meus outros parentes idem. Era uma palavra que não cabia em meu pequeno vocabulário português. Entendi, então, que meus colegas me deram um apelido. No começo eu até achei que era legal ter um, mas depois fui percebendo que, por causa dele, quase sempre eu era isolado nas brincadeiras, no pátio, na hora do lanche ou nas atividades escolares. Percebi que meu apelido era motivo de piada e minha origem era motivo de chacota. Isso me deixava muito triste.
O engraçado é que eles se pareciam comigo: tinham cara igual a minha, cabelos lisos como os meus, maçãs do rosto salientes e até pé chato alguns tinham. Por que eles zombavam de mim? 
Sabem quem me esclareceu? Minha mãe. Quando cheguei em casa e contei o que havia acontecido, ela me colocou entre suas pernas, afagou meus cabelos e disse, sem rodeios: 
– Eles se acham civilizados, meu filho. Acham que por estarem mais tempo na cidade, já aprenderam tudo e podem fazer mal para as outras pessoas. Não ligue para as bobagens que eles dirigem a você. Mas também não se permita ficar como eles. Seja sempre um bom menino e não deixe que um apelido destrua a bondade de seu coração.
Mamãe falou isso e me deixou brincar. Não pensei duas vezes e corri para encontrar meus amigos verdadeiros, que moravam na mesma aldeia que eu. Eu tinha perto de nove anos. Eu nunca gostei de ser índio.




Wednesday 22 April 2020 0 comments

A morte da máscara rubra


Por muito tempo a “Morte Rubra” devastara o país. Jamais pestilência alguma fora tão mortífera ou tão terrível. O sangue era sua revelação e sua marca — a vermelhidão e o horror do sangue. Surgia com dores agudas, súbitas vertigens; depois, vinha profusa sangueira pelos poros e a decomposição. As manchas vermelhas no corpo, em particular no rosto da vítima, estigmatizavam-na, isolando-a da compaixão e da solidariedade de seus semelhantes. A irrupção, o progresso e o desenlace da moléstia eram coisa de apenas meia hora.

Mas o príncipe Próspero sabia-se feliz, intrépido e sagaz. Quando seus domínios começaram a despovoar-se, chamou à sua presença um milheiro de amigos sadios e frívolos, escolhidos entre os fidalgos e damas da corte, e com eles se encerrou numa de suas abadias fortificadas. Era um edifício vasto e magnífico, criação do gosto excêntrico, posto que majestoso, do próprio príncipe. Forte e alta muralha, com portões de ferro, cercava-o por todos os lados. Uma vez lá dentro, os cortesões, com auxílio de forjas e pesados martelos, rebitaram os ferrolhos, a fim de cortar todos os meios de ingresso ao desespero dos de fora, e de escape, ao frenesi dos de dentro. A abadia estava amplamente abastecida. Com tais precauções, podiam os cortesões desafiar o contágio. O mundo externo que se arranjasse. Por enquanto, era loucura pensar nele ou afligir-se por sua causa. O príncipe tomara todas as providências para garantir o divertimento dos hóspedes. Contratara bufões, improvisadores, bailarinos, músicos. Beleza, vinho e segurança estavam dentro da abadia. Além de seus muros, campeava a “Morte Rubra”.
Ao fim do quinto ou sexto mês de reclusão, quando mais furiosamente lavrava a pestilência lá fora, o príncipe Próspero decidiu entreter seus amigos com um baile de máscaras de inédita magnificência.
Que cena voluptuosa, essa mascarada! Mas me permitam, primeiramente, falar das salas em que se realizou. Era uma série imperial de sete salões. Na maioria dos palácios, tais séries formam longas perspectivas em linha reta, as portas abrindo-se de par em par, possibilitando a visão de todo o conjunto. Aqui, o caso era diverso, como se devia esperar do gosto bizarro do duque. Os apartamentos estavam dispostos de forma tão irregular que a vista abarcava pouco mais de um por vez. A cada vinte ou trinta metros, havia um cotovelo brusco, proporcionando novas perspectivas. À direita e à esquerda, no meio de cada parede, uma alta e estreita janela gótica abria-se para o corredor fechado que acompanhava as sinuosidades do conjunto. Essas janelas estavam providas de vitrais cuja cor variava de acordo com o tom predominante da decoração da sala para a qual davam. A sala da extremidade oriental, por exemplo, fora decorada em azul, e intensamente azuis eram suas janelas. A segunda sala tinha ornamento e tapeçarias purpúreas; purpúreas eram as vidraças. A terceira fora pintada de verde, sendo também verdes as armações das janelas. A quarta havia sido decorada e iluminada de alaranjado; a quinta, de branco; a sexta, de violeta. O sétimo aposento estava completamente revestido de veludo preto, que, pendendo do teto e ao longo das paredes, caía em dobras pesadas sobre um tapete de mesmo estofo e cor. Nesse aposento, entretanto, a cor das janelas não correspondia à das decorações. Suas vidraças eram vermelhas, de uma escura tonalidade sanguínea. Cumpre notar que em nenhum dos aposentos havia lâmpada ou candelabro pendendo do teto ricamente ornamentado a ouro. Luz alguma emanava de lâmpada ou candelabro em qualquer das salas. Contudo, nos corredores que as acompanhavam, em frente de cada janela, havia um pesado trípode a sustentar um braseiro cuja luz, filtrando-se através dos vitrais, iluminava o aposento, ocasionando uma infinidade de vistosas e fantásticas aparências. Na sala negra, porém, o clarão, infletindo sobre as negras cortinas através dos vitrais sanguíneos, produzia um efeito extremamente lívido e dava aparência tão estranha à fisionomia dos que ali entrassem que poucos tinham coragem de atravessar-lhe o umbral.
Era nesse mesmo aposento que havia, encostado à parede oeste, um gigantesco relógio de ébano. Seu pêndulo ia e vinha num tique-taque lento, pesado, monótono. Quando o ponteiro dos minutos completava a volta do mostrador e a hora estava para soar, saía dos brônzeos pulmões do relógio um som limpo, alto, agudo, extremamente musical, mas de ênfase e timbre tão peculiares que, a cada intervalo de hora, os músicos da orquestra viam-se constrangidos a interromper momentaneamente a execução para ouvi-lo. Nesses momentos, era forçoso que os dançarinos parassem de dançar, e um breve desconcerto se apoderava da alegre companhia. Enquanto vibrava o carrilhão do relógio, os mais afoitos empalideciam, e os mais idosos e sensatos passavam a mão pela fronte, como em sonho ou meditação confusa. Tão logo se esvaíam os ecos, um riso ligeiro percorria a assembleia. Os músicos se entreolhavam, sorrindo da própria nervosidade e loucura, fazendo juras sussurradas, uns aos outros, de que o próximo carrilhonar do relógio não mais produziria neles tal comoção. Todavia, sessenta minutos mais tarde (que abrangem três mil e seiscentos segundos do tempo que voa), quando vinha outro carrilhonar do relógio, de novo se dava o mesmo desconcerto, o mesmo tremor, a mesma meditação de antes.
A despeito de tudo isso, a folia ia alegre e magnífica. Os gostos do duque eram originais. Tinha ele um olho esperto para cores e efeitos. Desprezava as maneiras da moda em vigor. Seus projetos eram audazes e vivos; suas concepções esplendiam de um lustro bárbaro. Muitos acreditariam tratar-se de um louco. Seus adeptos, porém, sabiam que não. Era preciso ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo para assegurar-se de seu juízo perfeito.
Em grande parte, ele comandara pessoalmente a caprichosa decoração das salas para a grande festa; sob sua orientação, haviam sido escolhidas as fantasias. Sem dúvida, elas eram grotescas. Havia muito brilho, muita pompa, muita coisa fantástica, muito daquilo que, desde então, pode-se ver em Hernani. Havia figuras arabescas, com membros e adornos desproporcionados. Havia fantasias delirantes, invenções de louco. Havia muito de belo, de atrevido, de bizarro, algo de terrível, capaz em não pouca medida de provocar aversão. Para lá e para cá, nas sete salas, movimentava-se uma multidão de sonhos. E esses sonhos andavam de um canto a outro, impregnando-se do colorido das salas, fazendo a música extravagante da orquestra soar como o eco de seus passos. Mas logo cantava o relógio de ébano na sala aveludada; por um momento, tudo se fazia imobilidade e silêncio, perturbado apenas por aquela voz. Os sonhos paravam, retesados. Porém, quando os ecos do carrilhão se esvaíam — tinham durado apenas um instante —, um frouxo de riso os acompanhava. E, mais uma vez, a música era reiniciada, os sonhos tornavam a viver e a circular mais alegremente que nunca, banhados pelas cores que a luz dos trípodes, atravessando os vitrais, projetava sobre eles. Entretanto, à última das sete salas, ninguém se aventurava, porque, avançando a noite, a luz filtrada pelas rubras vidraças fazia-se mais sanguínea; e a negrura das cortinas escuras causava medo. Aqueles cujos pés pisassem o tapete veludoso ouviriam o som abafado do relógio, e o ouviriam mais solenemente enfático que os convivas dos demais salões.
Esses outros salões estavam cheios de gente; neles, pulsava febril o coração da vida. E a folia continuou, rodopiante, até que o relógio começou a bater meia-noite. A música parou, como já descrevi; acalmou-se o rodopio dos dançarinos; e, como antes, uma constrangida imobilidade tomou conta de todas as coisas. Doze foram as badaladas; por isso, os que meditavam entre os foliões tiveram tempo de meditar mais longa e profundamente. E antes que se esvanecesse o eco da última badalada, muitos dos convivas puderam perceber a presença de um novo mascarado, que, até então, não atraíra as atenções. Entre murmúrios, propagou-se a notícia da nova presença; elevou-se da companhia um zum-zum, um rumor de desaprovação e surpresa, a princípio; de terror, de horror e de náusea, depois.
Numa assembleia de fantasmas, como a que descrevi, era de supor que tal agitação não seria causada por aparição vulgar. Na realidade, a licença carnavalesca da noite fora praticamente ilimitada, mas o novo mascarado excedia em extravagância ao próprio Herodes; ultrapassava, inclusive, os indecisos limites de decoro impostos pelo príncipe. Há fibras no coração dos mais levianos que não podem ser tocadas impunemente. Mesmo para os pervertidos, para quem vida e morte são brinquedos igualmente frívolos, há assuntos sobre os quais não se admitem brincadeiras. Todos os presentes pareciam se dar conta de que, nos trajes e nas atitudes do estranho, nada havia de espirituoso ou de conveniente. Alto e lívido, vestia uma mortalha que o cobria da cabeça aos pés. A máscara que lhe escondia as feições imitava com tanta perfeição a rigidez facial de um cadáver que nem mesmo a um exame atento se perceberia o engano. E, no entanto, tudo isso seria, se não aprovado, ao menos tolerado pelos presentes, não fora a audácia do mascarado em disfarçar-se de Morte Rubra. Suas vestes estavam salpicadas de sangue; sua ampla fronte, assim como toda a face, fora borrifada com horrendas manchas escarlates.
Quando os olhos do príncipe Próspero caíram sobre aquela figura espectral (que, para melhor representar seu papel, caminhava entre os dançarinos com passos lentos e solenes), viram-no ser tomado de convulsões e arrepios de terror ou asco, no primeiro instante; logo depois, porém, seu rosto congestionou-se de raiva.
— Quem se atreve — perguntou roucamente aos cortesãos que o cercavam —, quem se atreve a insultar-nos com essa brincadeira blasfema? Agarrem-no, desmascarem-no! Assim saberemos quem deverá ser enforcado ao amanhecer!
Essas palavras vieram da sala azul, onde se achava o príncipe quando as pronunciou. Ecoavam pelas sete salas, alta e claramente, porque o príncipe era homem destemido e forte, e a música havia cessado, a um gesto seu.
Vieram da sala azul, onde estava o príncipe, rodeado de cortesãos empalidecidos. No primeiro momento que se seguiu à fala do príncipe, houve um ligeiro movimento de avanço do grupo em direção ao intruso. Este se achava perto e, com passos deliberados e firmes, aproximou-se do anfitrião. Mas, devido ao indefinível terror produzido pelo mascarado no ânimo de todos, ninguém se atreveu a agarrá-lo. Sem empecilho, ele se afastou, passando a um metro do lugar onde estava o príncipe. À sua passagem, toda a vasta assembleia, como que movida pelo mesmo impulso, afastou-se do centro das salas para as paredes, e o mascarado pôde seguir seu caminho com desembaraço, e com os mesmos passos solenes e medidos com que passara da sala azul à vermelha, da vermelha à verde, da verde à alaranjada, desta para a branca, e para a violeta, sem que nenhum dos circunstantes tivesse esboçado um gesto para detê-lo. Foi quando, louco de raiva e vergonha da própria e momentânea covardia, o príncipe Próspero cruzou apressadamente as seis salas, sem ninguém a segui-lo: o terror se apoderara de todos. Brandindo o punhal, avançava impetuosa e rapidamente; já estava a três ou quatro passos do vulto que se retirava, quando este, atingindo a extremidade da sala aveludada, virou-se bruscamente e enfrentou seu perseguidor. Nesse instante ouviu-se um grito agudo, e o punhal caiu cintilante no tapete negro, sobre o qual tombou também, instantaneamente e ferido de morte, o príncipe Próspero. Recorrendo à selvática coragem do desespero, um grupo de foliões correu para a sala negra e, agarrando o mascarado, cuja alta figura permanecia ereta e imóvel à sombra do relógio de ébano, detiveram-se eles, horrorizados, ao descobrir que a mortalha e a máscara mortuária que tão rudemente haviam agarrado não continham nenhuma forma tangível.
Só então se reconheceu a presença da Morte Rubra. Viera como um ladrão na noite. E, um a um, caíram os foliões nos ensanguentados salões da orgia, e morreram, conservando a mesma desesperada postura da queda. E a vida do relógio de ébano extinguiu-se simultaneamente com a do último dos foliões. E as chamas dos trípodes apagaram-se. E a Escuridão, a Ruína e a Morte Rubra estenderam seu domínio ilimitado sobre tudo.
– Edgar Allan Poe [tradução de José Paulo Paes]. no livro “A causa secreta: e outros contos de horror”. (Vários autores). São Paulo: Boa Companhia, 2013.

Tuesday 7 April 2020 0 comments

Oração


Hoje vou escrever sobre a arte de rezar. Dirão que esse não é tópico que devesse ser tratado por um terapeuta. Rezas e orações são coisas de padres, pastores e gurus religiosos, a serem ensinadas em igrejas, mosteiros e terreiros. Acontece que eu sei que o que as pessoas desejam, ao procurar a terapia: é reaprender a esquecida arte de rezar. Claro que elas não sabem disto. Falam sobre outras coisas, dez mil coisas. Não sabem que a alma deseja uma só coisa, cujo nome esquecemos. Como disse T. S. Eliot, temos conhecimento do movimento, mas não da tranquilidade; conhecimento das palavras e ignorância da Palavra. Todo o nosso conhecimento nos leva para mais perto da nossa ignorância, e toda a nossa ignorância nos leva para mais perto da morte.
A terapia é a busca desse nome esquecido. E quando ele é lembrado e é pronunciado com toda a paixão do corpo e da alma, a esse ato se dá o nome de poesia. A esse ato se pode dar também o nome de oração.
Por detrás da nossa tagarelice (falamos muito e escutamos pouco) está escondido o desejo de orar. Muitas palavras são ditas porque ainda não encontramos a única palavra que importa. Eu gostaria de demonstrar isso – e a demonstração começa com um passeio. Para começar, abra bem os olhos! Veja como este mundo é luminoso e belo! Tão bonito que Nietzsche até mesmo lhe compôs um poema:
“Olhei para este mundo – e era como se uma maçã redonda se oferecesse à minha mão, madura dourada maçã de pele de veludo fresco… Como se mãos delicadas me trouxessem um santuário, santuário aberto para o deleite de olhos tímidos e adorantes: assim este mundo hoje a mim se ofereceu…“
Tudo está bem. Tudo está em ordem. Nada impede o deleite dessa dádiva. Ninguém doente. Nenhuma privação econômica terrível. E há mesmo o gostar das pessoas com quem se vive, sem o que a vida teria um gosto amargo.
Mas isso não é tudo. Além das necessidades vitais básicas a alma precisa de beleza. E a beleza – o mundo a serve a mancheias. Está em todos os lugares, na lua, na rua, nas constelações, nas estações, no mar, no ar, nos rios, nas cachoeiras, na chuva, no cheiro das ervas, na luz que cintila na água crespa das lagoas, nos jardins, nos rostos, nas vozes, nos gestos.
Além da beleza estão os prazeres que moram nos olhos, nos ouvidos, no nariz, na boca, na pele.  Como no último dia da criação, temos de concordar com o Criador: olhando para o que tinha sido feito, viu que tudo era multo bom.
E, no entanto, sem que haja qualquer explicação para esse fato, tendo todas as coisas, a alma continua vazia. Álvaro de Campos colocou este sentimento num poema:
“Dá-me lírios, lírios, e rosas também. Crisântemos, dálias, violetas e os girassóis acima de todas as flores. Mas por mais rosas e lírios que me dês, eu nunca acharei que a vida é bastante, Faltar-me-á sempre qualquer coisa. Minha dor é inútil como uma gaiola numa terra onde não há aves. E minha dor é silenciosa e triste como a parte da praia onde o mar não chega.“

Como se uma nuvem cinzenta de tristeza-tédio cobrisse todas as coisas. A vida pesa. Caminha-se com dificuldade. O corpo se arrasta. As pessoas procuram a terapia alegando faltar um lírio aqui, uma rosa ali, um crisântemo acolá. Buscam, nessas coisas, a única coisa que importa: a alegria. Acontece que as fontes da alegria não são encontradas no mundo de fora. É inútil que me sejam dadas todas as flores do mundo: as fontes da alegria se encontram no mundo de dentro.
O mundo de dentro: as pessoas religiosas lhe dão o nome de alma. O que é a alma? Alma são as paisagens que existem dentro do nosso corpo. Nosso corpo é urna fronteira entre as paisagens de fora e as paisagens de dentro. E elas são diferentes. “O homem tem dois olhos“, disse o místico medieval Angelus Silésius. “Com um ele vê as coisas que passam no tempo. Com o outro ele vê o que é eterno e divino".Em algum lugar escondido das paisagens da alma se encontram as fontes da alegria – perdidas. Perdidas as fontes da alegria as paisagens da alma se apagam, o corpo fica como uma casa vazia. E quando a casa está vazia, vai-se a alegria. E as paisagens de fora ficam feias (a despeito de serem belas).
O mundo de fora é um mercado onde pássaros engaiolados são vendidos e comprados. As pessoas pensam que, se comprarem o pássaro certo, terão alegria. Mas pássaros engaiolados, por mais belos que sejam, não podem dar alegria. Na alma não há gaiolas.
A alegria é um pássaro que só vem quando quer. Ela é livre. O máximo que podemos fazer é quebrar todas as gaiolas e cantar uma canção de amor, na esperança de que ela nos ouça. Oração é o nome que se dá a esta canção para invocar a alegria.
Muitas orações são produtos da insensatez das pessoas. Acham que o universo estaria melhor se Deus ouvisse os seus conselhos. Pedem que Deus lhes dê pássaros engaiolados, muitos pássaros. Nisso protestantes e católicos são iguais. Tagarelam. E nem se dão ao trabalho de ouvir. Não sabem que a oração é só um gemido. “Suspiro da criatura oprimida“: haverá definição mais bonita? São palavras de Marx. Suspiro: gemido sem palavras que espera ouvir a música divina, a música que, se ouvida, nos traria a alegria.
Gosto de ler orações. Orações e poemas são a mesma coisa: palavras que se pronunciam a partir do silêncio, pedindo que o silêncio nos fale. A se acreditar em Ricardo Reis, é no silêncio que existe no intervalo das palavras que se ouve a voz de “um Ser qualquer, alheio a nós“, que nos fala. O nome do Ser? Não importa. Todos os nomes são metáforas para o Grande Mistério inominável que nos envolve. Gosto de ler orações porque elas dizem as palavras que eu gostaria de ter dito mas não consegui. As orações põem música no meu silêncio.

 (Rubem Alves – in “Palavra para desatar nós”, Editora Papirus)

Saturday 4 April 2020 0 comments

Uma esperança


Aqui em casa pousou uma esperança. Não a clássica, que tantas vezes verifica-se ser ilusória, embora mesmo assim nos sustente sempre. Mas a outra, bem concreta e verde: o inseto.

Houve um grito abafado de um de meus filhos:


- Uma esperança! e na parede, bem em cima de sua cadeira! 

Emoção dele também que unia em uma só as duas esperanças, já tem idade para isso. Antes surpresa minha: esperança é coisa secreta e costuma pousar diretamente em mim, sem ninguém saber, e não acima de minha cabeça numa parede. Pequeno rebuliço: mas era indubitável, lá estava ela, e mais magra e verde não poderia ser.

- Ela quase não tem corpo, queixei-me.

- Ela só tem alma, explicou meu filho e, como filhos são uma surpresa para nós, descobri com surpresa que ele falava das duas esperanças.

Ela caminhava devagar sobre os fiapos das longas pernas, por entre os quadros da parede. Três vezes tentou renitente uma saída entre dois quadros, três vezes teve que retroceder caminho. Custava a aprender.

- Ela é burrinha, comentou o menino.

- Sei disso, respondi um pouco trágica.

- Está agora procurando outro caminho, olhe, coitada, como ela hesita.

- Sei, é assim mesmo.

- Parece que esperança não tem olhos, mamãe, é guiada pelas antenas.

- Sei, continuei mais infeliz ainda.

Ali ficamos, não sei quanto tempo olhando. Vigiando-a como se vigiava na Grécia ou em Roma o começo de fogo do lar para que não se apagasse.

- Ela se esqueceu de que pode voar, mamãe, e pensa que só pode andar devagar assim.

Andava mesmo devagar - estaria por acaso ferida? Ah não, senão de um modo ou de outro escorreria sangue, tem sido sempre assim comigo.

Foi então que farejando o mundo que é comível, saiu de trás de um quadro uma aranha. Não uma aranha, mas me parecia "a" aranha. Andando pela sua teia invisível, parecia transladar-se maciamente no ar. Ela queria a esperança. Mas nós também queríamos e, oh! Deus, queríamos menos que comê-la. Meu filho foi buscar a vassoura. Eu disse fracamente, confusa, sem saber se chegara infelizmente a hora certa de perder a esperança:

- É que não se mata aranha, me disseram que traz sorte...

- Mas ela vai esmigalhar a esperança! respondeu o menino com ferocidade.

- Preciso falar com a empregada para limpar atrás dos quadros - falei sentindo a frase deslocada e ouvindo o certo cansaço que havia na minha voz. Depois devaneei um pouco de como eu seria sucinta e misteriosa com a empregada: eu lhe diria apenas: você faz o favor de facilitar o caminho da esperança.

O menino, morta a aranha, fez um trocadilho, com o inseto e a nossa esperança. Meu outro filho, que estava vendo televisão, ouviu e riu de prazer. Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo.

Mas como é bonito o inseto: mais pousa que vive, é um esqueletinho verde, e tem uma forma tão delicada que isso explica por que eu, que gosto de pegar nas coisas, nunca tentei pegá-la.

Uma vez, aliás, agora é que me lembro, uma esperança bem menor que esta, pousara no meu braço. Não senti nada, de tão leve que era, foi só visualmente que tomei consciência de sua presença. Encabulei com a delicadeza. Eu não mexia o braço e pensei: "e essa agora? que devo fazer?" Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada.

Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
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