Tuesday 30 April 2013 0 comments

Os laços de família - Clarice Lispector

A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia.
— Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.
— Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência.
Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma palavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.
— Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que… – Catarina olhava-os e ria.
— O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.
— Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.
— Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a proteger uma criança” …
— Não esqueci de nada…, recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. — Ah! ah! – exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?
Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar – por que não chegavam logo à Estação?
— Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.
Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.
— Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.
— Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.
Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.
O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada…
— …não esqueci de nada? perguntou a mãe.
— Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou… Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.
— Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.
— Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:
— Dê lembranças a titia! gritou.
— Sim, sim!
— Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam.
— Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela – o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.
No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluia e refluia no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.
O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.
— “Ela” foi?
— Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.
— Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.
Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.
Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.
Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.
Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…
O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho… mas o quê? “Catarina”, pensou, “Catarina, esta criança ainda é inocente!” Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. “Catarina”, pensou com cólera, “a criança é inocente!” Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado.
“Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arrumado, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro – deprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranqüilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torna-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranqüila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranqüilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vívido desde sempre.
Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.
A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar… e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.
— “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.
Clarice Lispector





































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O subsolo - Dostoiévski

Eu sou um homem doente… Sou um ho­mem malvado. Sou um homem desa­gradável. Creio que tenho uma doença do fígado. Aliás, não compreendo abso­lutamente nada da minha moléstia e não sei mesmo exatamente onde está o mal.
Não me cuido, nunca me cuidei, se bem que estime os mé­dicos e a medicina. Demais, sou extremamente supersticioso, o bastante, em todo o caso, para respeitar a medicina (sou bastante instruído: poderia então não ser supersticioso, mas sou). Não! Se não me trato, é pura maldade de minha parte. Não sabe­reis certamente compreender. Pois bem! eu compreendo. Não po­derei evidentemente explicar‑vos em que errei, agindo tão malvada­mente: sei muito bem que não são os médicos que eu incomodo, recusando‑me a tratar‑me. Não engano senão a mim mesmo; re­conheço‑o melhor que ninguém. Entretanto, é mesmo por malvadez que não me trato. Sofro do fígado! Tanto melhor! E tanto melhor ainda se o mal piora.
Há muito tempo já que eu vivo assim: uns vinte anos, pouco mais ou menos. Fui funcionário, pedi demissão. Fui um funcionário muito ruim. Era grosseiro e tinha prazer em sê‑lo. Podia bem me compensar desta maneira, pois que eu não aceitava gorjetas (esta brincadeira não tem graça; mas não a suprimirei. Escrevi‑a crendo que teria espírito; não a apagarei, entretanto, expressamente; porque vejo que queria me dar ares de importância). Quando os solicitantes em busca de informações se aproximavam da mesa diante da qual eu estava sentado, eu rangia os dentes; sentia uma volúpia indizível, quando conseguia causar‑lhes algum aborrecimento. Conseguia‑o quase sempre. Eram geralmente pessoas tímidas, acanhadas. Solicitantes, pois quê! Mas havia às vezes presumidos entre eles, petulantes, e eu detesta­va particularmente certo oficial. Ele não entendia de submissão e arrastava o grande sabre, de um modo detestável. Durante um ano e meio movi‑lhe guerra, por causa desse sabre, e finalmente saí vencedor: ele parou de teimar. Isto, aliás, se passava no tempo da minha mocidade.
Ora, sabeis, senhores, o que excitava sobretudo minha raiva, o que a tornava particularmente vil e estúpida? É que eu me intei­rava vergonhosamente, mesmo quando a minha bílis se esparramava mais violentamente, que eu não era mau homem, no fundo, não era nem mesmo um homem azedo, e que tomava gosto, muito simplesmente, em assustar os pardais. Tenho espuma na boca; mas, trazei‑me uma boneca, oferecei‑me uma chávena de chá bem doce, e é provável que eu me acalme; sentir‑me‑ei mesmo muito comovido. É verdade que, mais tarde, morderei os punhos de raiva, e de vergo­nha perderei o sono durante alguns meses. Sim, eu sou assim.
Menti antes, quando disse que tinha sido um mau funcionário. Foi por despeito que menti. Tentava muito simplesmente distrair­‑me com os solicitantes e esse oficial, e nunca pude conseguir tor­nar‑me realmente mau. Com efeito, verificava sempre em mim a presença de um grande número de elementos diversos que se opunham violentamente. Sentia‑os fervilharem em mim, por assim dizer. Sabia que estavam presentes sempre e aspiravam a mani­festar‑se do lado de fora, mas eu não os deixava; não, não lhes permitia evadirem‑se. Atormentavam‑me até à vergonha, até às con­vulsões. Oh! como eu estava fatigado! como estava saturado!
Mas não vos parece, senhores, que eu me arrependo e que vos peço perdão de não sei que crime? Estou certo, senhores, que ides imaginar isso… Mas aliás, digo‑vos que, quer vós o imagineis ou não, isso me é indiferente…
Jamais consegui nada, nem mesmo me tomar malvado; não con­segui ser belo, nem mau, nem canalha, nem herói, nem mesmo um inseto. E agora, termino a existência no meu cantinho, onde tento piedosamente me consolar, aliás sem sucesso, dizendo‑me que um homem inteligente não consegue nunca se tornar alguma coisa, e que só o imbecil triunfa. Sim, meus senhores. o homem do século XIX tem o dever de ser essencialmente destituído de cará­ter; está moralmente obrigado a isso. O homem que possui caráter, o homem. de ação, é um ser essencialmente medíocre. Tal é a convicção de meus quarenta anos de existência.
Tenho quarenta anos atualmente. Ora, quarenta anos, é toda a vida, é a profunda velhice. É inconveniente, é imoral, é vil viver além dos quarenta. Quem vive depois dos quarenta anos? Respondei sinceramente, honestamente! Vou dizer‑vos, sim, eu: os imbecis, os patifes, esses vivem mais de quarenta anos. Eu o pro­clamarei à face de todos os velhos, de todos os respeitáveis velhos, de todos os velhos de cabelos cor de prata e perfumados! Eu, o proclamarei à face do universo inteiro. Tenho o direito de falar ~ porque eu, eu viverei até os sessenta anos! até os setenta anos! até os oitenta anos! Mas esperai! Deixai‑me tomar fôlego!
Imaginais, certamente, senhores, que me proponho vos fazer rir? Enganais‑vos a esse respeito, como sobre o resto. Não sou de modo algum tio divertido como vos parece, ou quanto vos pode parecer. De resto, se agastados por tida essa tagarelice (estais irritados, sinto já), vós me perguntais o que sou, afinal de contas, responderei: sou um assistente de colégio. Entrei na administração para poder comer (mas unicamente para isso), e quando no ano ~o um dos meus parentes afastados me legou por testamento seis mil rublos, pedi depressa minha demissão e me enterrei no meu canto; ali morava já há muito tempo, mas instalei‑me agora definitivamente. O quarto que ocupo nos confins da cidade é feio, e desmantelado. Minha criada é uma velha camponesa que a burri­ce tornou malvada; além disso, cheira mal. Dizem‑me que o clima de Petersburgo me é prejudicial, e que a vida custa caro demais para os recursos ínfimos de que disponho. Sei disso; sei bem melhor que todos esses sábios conselheiros. Mas fico em Peters­burgo. Não deixarei Petersburgo porque.. . . Que eu parta ou não, aliás, que importa!. ..
Mas, do que um homem honesto pode falar com mais prazer?
Resposta: de si mesmo.
Pois bem! Vou então falar de mim mesmo!
II
Quero agora contar‑vos, meus senhores, quer o desejeis ou não, por que eu não consegui nem mesmo me tornar um inseto. Declaro‑vos solenemente: um grande número de vezes já tentei tor­nar‑me um inseto; mas não fui julgado digno disso.
Uma consciência clarividente demais, asseguro‑vos, senhores, é uma doença, uma doença muito real. Uma consciência ordinária nos basta mais que amplamente em nossa vida cotidiana, isto é, lima porção igual à metade, a um quarto da consciência outorgada ao homem culto do nosso século XIX e que, para sua desgraça, habita Petersburgo, a mais abstrata, a mais “premeditada” das ci­dades que existem sobre a terra (pois há cidades premeditadas e outras que não o são). Ter‑se‑ia, por exemplo, amplamente ~O suficiente dessa porção de consciência que possuem os homens ditos sinceros, espontâneos, assim como os homens de ação.
Imaginais, aposto, que escrevo tudo isto por atitude, para zom­bar dos homens de ação, para me dar importância, como esse arrastador de sabre de que falava há pouco, mas seria uma atitude de muito mau gosto. Quem pensaria então, dizei‑me, senhores, em se glorificar com suas doenças e fazer delas motivo de orgulho?
Mas que digo eu! Todo o mundo age assim. É precisamente de suas moléstias que cada um tira glória e eu, provavelmente, ainda mais que os outros. Não discutamos! Minha objeção é estúpida.
Entretanto ‑ estou firmemente convencido ‑ a consciência, toda consciência é uma enfermidade. Eu o sustento. Mas deixe­mos isto por agora. Respondei‑me alisto: como era possível que sempre, no instante mesmo ‑ sim, como se fosse de propósito ‑ precisamente no instante em que eu era o mais capaz de apreciar todas as nuanças do belo, do sublime, corno se dizia entre nós há pouco tempo, me acontecesse não somente pensar, mas fazer coisas tio incongruentes que… ações, para ser breve, que todos levam a cabo talvez bem, mas que eu praticava justamente quando tinha perfeita consciência de que era preciso me abster? Quanto mais o bem e todas as coisas “belas e sublimes” se tomavam claras à minha consciência, mais profundamente eu me afundava na minha lama, mais eu me sentia capaz de me enterrar definitivamen­te. Porém o que era particularmente notável, é que esse desacordo não parecia uma coisa fortuita, dependendo das circunstâncias, mas parecia vir por si e se produzir muito naturalmente. Dir‑se‑ia que era meu estado normal e de modo nenhum uma doença ou um vício; a tal ponto que, finalmente, perdi todo o desejo de lutar. Enfim, para concluir, admito quase (talvez o admita completamente) que tal era com efeito o estado normal do meu espírito. Mas, antes, no começo, quantos sofrimentos suportei pacientemente nessa luta! Não acreditava que outros pudessem estar no mesmo caso, e durante toda a minha vida escondi esta particularidade como um segredo. Eu tinha vergonha (pode ser que tenha vergonha ainda hoje). Isto ia tio longe que me acontecia gozar uma espécie de prazer secreto, vil, anormal, ao entrar em casa, no meu buraco, por uma dessas noites petersburguesas sujas e feias, e repetindo‑me que tinha ainda cometido uma vilania, nesse dia, e que era impossível reaparecer lá em cima. E inquietava‑me então interiormente. Eu me atormentava, despedaçava‑me, bebia longamente a minha amar­gura, fartava‑me tanto, que finalmente sentia uma espécie de fra­queza vergonhosa, maldita, onde gozava uma volúpia real. Sim, uma volúpia! Uma volúpia! Insisto nisso. Comecei a falar disto, precisamente porque eu quero saber com justeza se os outros co­nhecem tais volúpias.
Explicar‑vos‑ei: a volúpia, neste caso, provinha de que eu me inteirava demais da minha humilhação; ela unia‑se à sensação de ter atingido um último limite: tua situação é abominável, mas não pode ser outra; não te resta nenhuma salda; nunca poderás mudar, porque, mesmo que tivesses o tempo e a fé necessários, tu mesmo não quererias tomar‑te um homem diferente; e, aliás, ainda que quisesses mudar, serias incapaz: com efeito, mudar em quê? ‑Não há talvez nada além disso!
Mas o essencial ‑ e isto é o fim dos fins ‑ é que tudo se cumpre conforme as leis fundamentais e normais da consciência requintada e dela flui diretamente, embora seja completamente impossível não somente mudar, mas em geral, reagir, de um modo qualquer. A consciência requintada nos diz, por exemplo: “sim, tens razão, tu és um canalha”; mas o fato de eu poder verificar a minha própria canalhice, não me consola de jeito nenhum de ser um canalha. Mas isto chega!… Quantas palavras, meu Deus. Mas que explicaste? De onde provém essa volúpia? Pro­curo explicar‑me entretanto. Irei até o fim. Foi para isto que tornei a pena…
Assim, por exemplo, tenho um amor‑próprio terrível; sou tão desconfiado e suscetível como um corcunda, ou um anão. Mas, verdadeiramente, houve minutos da minha existência em que, se me tivessem dado uma bofetada, eu teria sido muito feliz, talvez. Falo seriamente: teria podido certamente encontrar aí algum prazer, o prazer do desespero, evidentemente; é o desespero que encobre as volúpias mais ardentes, sobretudo quando a situação parece real­mente sem saída. Ora, aí, no caso da bofetada, quanto aniquila­mento esta sensação de ter sido esmagado assim!
Mas o principal é que sempre acontece que sou eu o culpado, de qualquer lado que se examinem as coisas, e, o que é mais, culpado sem afinal o ser, ou dito por outra forma: de conformi­dade com as leis da natureza. Sou culpado, em primeiro lugar porque sou mais inteligente do que todos aqueles que me rodeiam (julguei‑me sempre mais inteligente do que aqueles que me cercam, e acontece‑me até ‑ imaginai! ‑ sentir‑me confuso com a mi­nha superioridade, de tal modo que durante a minha vida tenho olhado as pessoas de esguelha, por assim dizer, e nunca pude enca­rá‑las bem de frente). Sou culpado, além disso, porque mesmo que eu tivesse tido um sentimento qualquer de generosidade, a consciência de sua inutilidade não teria servido senão para me atormentar ainda mais. Eu não teria podido certamente tirar nada daí: não teria podido perdoar, pois o ofensor teria me atacado conforme as leis da natureza, as quais não fazem caso do nosso perdão; mas impossível, por outro lado, esquecer, pois o insulto, por mais natural que seja, nem por isso permanece menos. Enfim, mesmo que eu renunciasse a ser generoso e quisesse, ao contrário, vingar‑me do ofensor, não poderia fazê‑lo, porque me era impos­sível decidir‑me a agir, mesmo que tivesse esse direito.
E afinal, por quê? É a esse respeito que eu queria dizer‑vos algumas palavras.
III
Como as coisas se passam entre aqueles que são capazes de se vingarem e, em geral, de se defenderem?
Quando o desejo de vingança se apodera de seu espírito, não há lugar neles senão para esse desejo. Precipitam‑se para a frente sem se desviarem, cornos abaixados, como touros furiosos, e não se detêm na carreira senão quando se encontram diante de um muro. A propósito, diante de um muro, esses senhores, isto é, as pessoas simples e espontâneas, os homens de ação, se apagam e cedem com toda a sinceridade. Para eles esse muro não é de maneira alguma o que é para nós outros, os que pensamos, e, por conseqüência, não agimos: quer dizer, uma escusa; não é de modo algum, a seus olhos, um pretexto cômodo para arrepiar caminho, pretexto no qual nós outros não
VII
Mas não são senão sonhos de ouro!
Oh! dizei‑me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homem não comete vilanias senão porque não se apercebe de seus próprios interesses, e que se fosse escla­recido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais, cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois, esclarecido pela ciência e compreendendo seus verdadeiros interesses; encontraria no bem sua própria vantagem? Como está entendido que ninguém pode agir conscientemente contra seu próprio interesse, o homem seria então por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh! criança! criança pura e ingênua!
Mas dar‑se-á que o homem, no curso desses milhares de anos, não agiu senão segundo o seu interesse? Que faremos então desses milhões de fatos que atestam que os homens, tendo embora perfeita consciência do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminho totalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? Não são, entretanto, forçados a isso; mas parece que querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traçar livremente, caprichosamente, uma outra, cheia de difi­culdades, absurda, mal reconhecível, obscura. Ê que essa liberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus próprios interesses … O interesse! Que é o interesse? Vós vos empenhais em me de­finir com toda a exatidão em que consiste o interesse do homem? Que direis vós se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casos pode ou mesmo deve consistir em desejar, não uma vantagem, mas um mal? Se é assim, se esse caso se pode apresentar, então tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?
Vós rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses hu­manos estão enumerados com exatidão? Será que não existem alguns que não entram em nenhuma das vossas classificações e não podem aí encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, orga­nizastes vosso registro dos interesses humanos de acordo com as cifras médias das estatísticas e das fórmulas econômico‑científicas. Os interesses humanos são, pois, segundo vós, a riqueza, a tran­qüilidade, a liberdade, e assim por diante; de maneira que, o ho­mem que repelisse consciente e ostensivamente o vosso registro, deveria ser considerado, na vossa opinião, e, aliás, também na minha, como um obscurantista, um louco? Não é assim? Mas eis o que é bem estranho: como é possível que todos esses esta­tísticos, esses sábios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento, nos seus cálculos de interesses humanos? Eles não querem mesmo levá‑los em conta nas suas fórmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa não seria difícil, entretanto; por que não completar a lista e introduzir‑lhe o elemento em ques­tão ?… Mas a dificuldade provém de que esse elemento tão par­ticular não pode encontrar lugar em nenhuma classificação e não pode se inscrever em nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo… Mas fico pensando nisso! Vós o conheceis também; ele é o amigo de todo o mundo.
Quando se prepara para agir, esse senhor começa por explicar­‑vos muito claramente, com belas e grandes frases, como lhe é preciso agir para se conformar à razão e à verdade. É pouco dizer: ele discutirá com paixão, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade; escarnecerá cegamente dos tolos que não compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem o verdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, sem razão nenhuma, sob um impulso inte­rior mais poderoso que todas as considerações do interesse, ele fará uma coisa ridícula, uma tolice qualquer, e agirá então contra todos os preceitos que tinha citado, contra a razão, contra os seus interesses, contra tudo…
Previno‑vos, de resto, que meu amigo é uma personalidade coletiva e que é difícil, por conseqüência, condená‑lo sozinho. É precisamente a isto que quero chegar, senhores! Não há uma coisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Por outras palavras (para não violar a lógica): não existe para nós um interesse (aquele que se deixa de lado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, mais precioso que todos eles, e pelo qual o homem está pronto, se for preciso, a agir contra todas as regras, isto é, contra a razão, sacrificando‑lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisas belas e vantajosas, em uma palavra, nada senão para atingir uma coisa única que lhe é mais cara que todas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?
‑ Sim, ‑ direis, ‑ mas é ainda de interesse que se trata… – Permiti! Vamos nos explicar; não é com jogos de palavras que se pode esclarecer a questão. O que faz a singularidade dessa coisa, desse interesse, é que ele destrói todas as nossas classificações e altera todos os sistemas edificados pelos amigos do gênero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, é um embaraço, um obstáculo. Mas antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo então com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar à Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa e nobre no seu esforço para atin­gir os ditos interesses, declaro que tudo isso não passa de logísti­ca. Sim, pura logística! Crer que a renovação do gênero humano possa ‑realizar‑se fazendo‑lhe conhecer seus verdadeiros interesses, eqüivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle que a civilização suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinário, menos guerreiro. Buckle chegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixão pelos sistemas, pelas deduções abstratas, que está pronto * desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar os olhos * tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua. lógica.
Tomo este exemplo porque é convincente. Olhai pois em torno de vós! O sangue corre em borbotões, alegremente mesmo, como champanha. Vêde nosso século XIX, no qual viveu Buckle! Vede Napoleão, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a América do Norte e sua união, estabelecida para a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig‑Holstein. Então em que é que a civilização nos adoça? A civilização não faz mais que desenvolver em nós a diversidade das sensações… nada mais. E graças ao desenvolvimento dessa diversidade, é muito possível que o homem acabe por descobrir uma certa volúpia no sangue. Isto aliás já aconteceu.
Notastes já que os sanguinários mais refinados foram sempre senhores muito civilizados, junto dos quais todos esses Átila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Se esses senhores se fazem notar menos, é que se encontram mais freqüentemente e estamos habituados com isso. Mas se a civiliza­ção não tornou o homem mais sanguinário, tornou‑o sem dúvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinário. Antigamente, o homem considerava que tinha o direito de derramar sangue, e era com a consciência bem tranqüila que destruía o que bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efusão de sangue uma ação condenável, nem por isso deixamos de matar, e mais freqüentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vós mesmos. Diz‑se que Cleópatra (desculpai este exemplo tirado da História Romana) divertia‑se em espetar agulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contorções. Dir‑me‑eis que isso se passava numa época relativamente bárbara, que nosso século é bárbaro também, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido uma compreensão mais clara das coisas que naqueles recuados tempos,, não pôde ainda se habituar à seguir as normas da razão e da ciência. Mas estais certos, não obstante, que ele se habituará quando se desfizer com­pletamente de certas tendências ruins, e quando o senso comum e a ciência tiverem completamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal, Estais certos de quê então o homem deixará de se enganar deliberadamente e se verá por assim dizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.
Mas há mais ainda: então, dizeis, a ciência ensinará ao homem (mas na minha opinião, isto já é um luxo supérfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que não passa, em suma, de uma tecla de piano, de um pedal de órgão; o que realiza, por conse­guinte, realiza‑o, não segundo sua vontade, mas conforme às leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis, e o homem então não poderá mais ser considerado responsável por suas ações, e a vida se lhe tornará extremamente fácil. Todas as ações humanas poderio ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, como se faz para os logaritmos, até q centésimo milésimo, e serão inscritas nas efemérides, ou far‑se‑ão livros esti­máveis no gênero dos nossos dicionários enciclopédicos, onde tudo ficará tão bem calculado e previsto, que não haverá mais aventuras, nem mesmo mais ações.
Então, e sois vós quem continua a falar, ver‑se‑á estabelecerem­‑se novas relações econômicas, que serão, por sua vez, fixadas com precisão matemática, que todas as dúvidas desaparecerão logo, pela simples razão de que se terão descoberto todas as soluções. Então se edificará um vasto palácio de cristal. Então veremos o Pássaro de Fogo, então… Não se pode certamente garantir (sou eu que falo agora) que não será terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo está calculado e fixado de antemão?); em compensação, serão todos muito sábios. Evidentemente o tédio pode ser mau conselheiro: é o tédio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne… Mas isto não é nada ainda. O que é mais grave (sou eu quem continua a falar) é que talvez nos acharemos então muito felizes de ter à mão agulhas de ouro: o homem é bruto, terrivelmente bruto, ou melhor dizendo, não é tão bruto quanto ingrato, e é difícil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu não ficaria pois admirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de súbito um cavalheiro despojado de elegância, com o rosto “re­trógrado” e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mãos na cintura: “Pois bem, senhores! Se jogássemos por terra, de um só pontapé, toda essa felicidade tranqüila, nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomeçar a viver segundo a nossa tola fantasia?” Isso não seria ainda nada; mas o mais terrível é que esse personagem encontraria certamente discípulos. O homem é feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa ínfima que se poderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre e em todas às si­tuações, a agir segundo sua vontade e não de acordo com as pres­crições da razão e do interesse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta idéia me pertence, como propriedade par­ticular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbítrio, meu capricho, por estapafúrdio que seja, minha fantasia sobreexcitada até a demência, eis precisamente a coisa que se põe de lado, o interesse mais precioso que não pode encontrar lugar em nenhuma de vossas classificações, e que quebra em mil pedaços todos os sistemas, todas as teorias.
Onde, pois, aprenderam os nossos sábios que o homem tem necessidade de não sei que vontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspirações após uma certa von­tade racional e útil? O homem não aspira senão depois de uma vontade independente, qualquer que seja o preço e sejam quais forem os resultados. Mas só o diabo sabe o que essa vontade vale…
Acreditamos geralmente, mas do qual nos aproveitamos com alegria. Não, eles, eles cedem de todo o coração. O muro é a seus olhos um apaziguamento; ofe­rece‑lhes uma solução moral, definitiva, direi talvez mesmo mística. Mas tomaremos a falar ainda desse muro.
Pois bem, é precisamente esse homem simples e espontâneo que considero como o homem normal por excelência, no qual pen­sava nossa terna mãe Natureza quando nos fazia amavelmente nascer sobre a terra. Invejo esse homem. Não nego: ele é estú­pido. Mas que sabeis a esse respeito? É possível que o homem normal deva ser burro. E possível mesmo que isto seja muito belo. E esta suposição me parece tanto mais justificada quanto, se tomarmos a antítese do homem normal, isto é, o homem com a consciência refinada, o homem saído não do seio da natureza, mas de um alambique (é quase misticismo, senhores; mas estou incli­nado também a essa suspeita), vê‑se que esse homem alambicado se apaga por vezes a tal ponto diante da sua antítese e lhe cede, que, malgrado todo o refinamento da sua consciência, acontece‑lhe não mais se considerar senão tão pequeno como um rato. Será talvez um rato extremamente clarividente, mas nem por isso é me­nos um rato, e não um homem, enquanto que o outro é bem um homem; em conseqüência…, etc., etc. Mas o pior é que ele se considera a si mesmo como um ratinho, ele mesmo! Ninguém, com efeito, exige dele essa confissão. E isto é muito importante.
Vejamos então um pouco esse ratinho em ação. Ele também foi ofendido, por exemplo (Se se sente quase continuamente ofen­dido), e pretende se vingar. É possível que acumule em si mais raiva ainda que o homem da natureza e da verdade. O desejo desprezível e mesquinho de pagar ao seu ofensor o mal com o mal o domina, talvez ainda mais violentamente do que domina o homem da natureza e da verdade, porque este, em sua rudeza natural, considera sua vingança como urna ação perfeitamente justa, enquanto que o ratinho não lhe pode admitir a justiça, por causa de sua consciência mais clarividente. Mas eis‑nos enfim chegados ao ato mesmo, à vingança. Em acréscimo à vilania inicial, o desgraçado ratinho conseguiu acumular em torno de si, sob a forma de dúvidas e hesitações, tantas outras vilanias, à primeira indaga­ção ajuntou tantas outras, completamente insolúveis, que, por mais que faça, criou em torno de si um atoleiro fatal, um lodaçal fedo­rento, um charco de lama, formado de suas hesitações, de suas suspeitas, de sua agitação, de todos os escarros que fazem chover sobre ele os homens de ação que o cercam, o julgam, o aconselham e dele riem a bandeiras despregadas.
Não lhe resta então mais nada a fazer, evidentemente, que abandonar tudo, simulando desprezo, e desaparecer vergonhosamen­te no seu buraco. E lá, num sujo e lamacento subterrâneo, nosso ratinho, insultado, batido e escarnecido, lentamente mergulha na sua raiva fria, envenenada e sobretudo inesgotável. Durante qua­renta anos êle se lembrará do insulto sofrido, em todos os seus pormenores mais vergonhosos, e acrescentando‑lhe de cada vez outros mais vergonhosos ainda, excitando‑se malvadamente, atiçando‑lhe a imaginação. Ele próprio terá vergonha, mas evocará todas as minúcias, passará em revista uma a uma todas as circunstâncias, inventará mesmo outras, sob o pretexto de que elas teriam podido acontecer, e não perdoará nada.
Talvez mesmo tente se vingar, mas em segredo, em pequenas doses, incógnito, sem nenhuma confiança nem em seu direito nem no sucesso da sua vingança, e sabendo muito bem que suas tenta­tivas de vingança o farão sofrer muito mais a ele mesmo do que àquele contra o qual são dirigidas, e que nem sequer provavelmente as notará. No seu leito de morte, ele se recordará de novo e aí reunirá os proveitos acumulados, e então… Mas é precisa­mente essa mistura abominável e gelada de desespero e de esperança, é precisamente esse sepultamento voluntário, e esta existência de emparedado vivo, esta ausência, claramente percebida, mas sempre duvidosa, de toda solução, é esse vínculo de desejos insatisfeitos e enfurnados, de decisões febris tomadas para a eternidade mas imediatamente seguidas de remorsos, é isso precisamente o que se­grega esta volúpia estranha de que falava antes. Ela é tão sutil, às vezes, escapa a tal ponto à consciência, que as pessoas um tanto medíocres ‑ ou mesmo aqueles que têm simplesmente os nervos sólidos ‑ nada percebem. “Tampouco compreenderão, ajuntareis talvez zombeteiramente, aqueles que nunca foram estapeados.” E vós me fareis polidamente entender assim que recebi uma bofetada e que falo com conhecimento de causa. Aposto que o pensastes. Mas tranqüilizai‑vos, senhores, não fui esbofeteado, e de resto, o que possais pensar a esse respeito me é completamente indiferente. Talvez seja eu quem lamente ter distribuído pouquíssimos bofetões em minha existência. Mas basta! nem mais uma palavra sobre esse assunto, por mais interessante que seja para vós!
Continuo então tranqüilamente a respeito das pessoas de nervos sólidos que não saboreiam certas volúpias sutis. Se bem que esses senhores dêem mugidos como touros em certos casos, se bem que isso seja muito honroso para eles, entretanto, como eu disse, diante do impossível eles cedem, apagam‑se. Impossibilidade! portanto, muralha de pedra. Mas que muralha é essa? São as leis naturais evidentemente, os resultados das ciências exatas, as matemáticas. Se vos demonstram, por exemplo, que descendeis do macaco, inútil fazer cara feia! deveis aceitá‑lo. Se vos provam que uma só gota de vossa própria gordura vos deve ser mais cara que cem mil dos vossos semelhantes, e que é por isso que desabrocham todas as virtudes, todas as obrigações e outras fantasias e preconceitos, não há nada a fazer, deveis aceitá‑lo, porque duas vezes dois são quatro; é da força das matemáticas. Tentai um pouco discutir!
“Perdão! exclamarão, vós não podeis protestar: duas vezes dois são quatro. A natureza não se importa com as vossas pre­tensões; ela não se preocupa com os vossos desejos e se suas leis não vos convêm, pouco se lhe dá. Sois obrigado a aceitá‑la tal como é, assim como todas as conseqüências. Um muro é um muro…”, etc., etc. Mas que me importam, meu Deus! as leis da natureza e a aritmética, se, por uma razão ou por outra, essas leis e este “duas vezes dois quatro” não me agradam? Não po­derei evidentemente quebrar esse muro com a cabeça, se minhas forças não são suficientes; mas recuso‑me a me humilhar diante desse obstáculo, pela única razão de que é um muro de pedra e que minhas forças são insuficientes!
Como se esse muro pudesse me trazer um apaziguamento qual­quer, como se alguém se pudesse reconciliar com o impossível pela única razão de ter sido estabelecido “dois e dois serem quatro”. Oh! o mais absurdo de todos os absurdos!
Quanto é mais penoso compreender tudo, tomar consciência de todas as impossibilidades, de todos os muros de pedra; porém não se humilhar diante de nenhuma dessas impossibilidades, diante de nenhuma dessas muralhas se isso te repugna, chegar, seguindo as deduções lógicas mais inelutáveis, às conclusões mais desespera­doras, no tocante a esse tema eterno de tua parte de responsabili­dade nessa muralha de pedra, se bem que esteja claro até a evidência que tu não estás aqui para nada, e em conseqüência, mergulhares silenciosamente, mas rangendo deliciosamente os dentes, na tua inér­cia, pensando que não podes mesmo te revoltar contra seja o que for, porque não há ninguém em suma, porque isto não é ~ uma farsa, senão urna falcatrua, porque é uma trapalhada, não se sabe o quê nem se sabe quem, porém que, malgrado todas estas velhacadas, malgrado esta ignorância, tu sofres, e tanto mais quanto menos compreendes.
IV
“Ah! Ah! Ah! Se é assim, você chegará a descobrir uma certa volúpia até na dor de dentes!”, exclamais vós, rindo.
- Mas, sim, responderei; há uma volúpia na dor de dentes: tive dor de dentes um mês inteiro; sei o que digo. Não se sofre em silêncio, neste caso; geme‑se. Mas a esses gemidos falta fran­queza; há neles certa malignidade, e tudo está ali, precisamente. Esses gemidos exprimem a volúpia daquele que sofre; se a doença não lhe trouxesse um certo prazer, ele cessaria de se ‘queixar. É um exemplo excelente, senhores, e vou desenvolvê‑lo.
Esses gemidos exprimem, primeiramente; a consciência tão hu­milhante da perfeita inutilidade de vosso sofrimento, sua legali­dade do ponto de vista da natureza, sobre a qual escarrais, evidente­mente, mas que vos faz sofrer, permanecendo perfeitamente impassível. Significam também ‑ que vós compreendeis que o inimigo não existe, mas que a dor está lá, mesmo assim, e que, com todos os vossos Wagenheim, sois o escravo de vossos dentes: quando calhar, vossos dentes cessarão de doer; mas se foi decidido de outra maneira, eles vos farão ainda sofrer durante três meses. E, se vós recusais a vos submeter e protestais apesar de tudo, não vos resta outro meio de vos consolardes senão o de vos esbofeteardes e de quebrardes os punhos contra a parede. Pois bem! são preci­samente essas ofensas sangrentas, essas chalaças, que se permite não se sabe quem, são elas que suscitam esta sensação de prazer, a qual atinge por vezes a suprema volúpia.
Eu vos suplico, senhores, prestai atenção uma vez aos gemidos de um homem culto do século XIX que sofre dos dentes há dois ou três dias, quando ele se põe a gemer de modo diferente do primeiro dia, isto é, não unicamente porque tem uma dor, não como um grosseiro camponês, mas como um ser instruído que se pôs em contato com a civilização européia, como um homem “des­ligado do solo natal e dos princípios nacionais”, como se diz hoje em dia. Seus gemidos se fazem maus, raivosos e não cessam mais, nem de dia nem de noite. Ele próprio sente muito bem, entretanto, que não lhe são de nenhuma utilidade. Melhor que ninguém, sabe que irrita os que o rodeiam e os tortura, e se tortura a si mesmo, sem proveito nenhum. Sabe que o público e a família, diante da qual se debate, não experimentam mais que desgosto com suas queixas, não mais acreditam nelas, e compreendem que poderia gemer de outra maneira, mais simplesmente, sem todos esses trinados, sem todas essas atitudes, e que ele exagera por malícia e por malvadez… Pois bem! aí está! 9 justamente nessa humi­lhação claramente vista que jaz a volúpia. “Ah! eu vos desoriento, dilacero‑vos o coração, impeço de dormir toda a casa! Pois bem! Tanto melhor! Não durmais então! Convencei‑vos de que tenho dor de dentes! Não sou mais para vós esse herói que pretendia ser; não passo de um pobre poltrão, de um patife! Tanto me­lhor! Estou feliz, mesmo que me tenhais adivinhado enfim! Meus miseráveis gemidos vos são penosos de ouvir? Tanto pior! Eu vos lançarei numa roda‑viva mais bela ainda!. . .
Continuais a não compreender, senhores? ‑ Sim, para poder apanhar todas as nuanças dessa volúpia sensual, é preciso que vossa consciência atinja uma grande profundidade. Rides? Sou muito feliz. Minhas brincadeiras, senhores, são de muito mau gosto, cer­tamente; são embrulhadas e soam falso. Tudo isto provém de que eu não me respeito: mas aquele que se conhece pode se estimar, por pouco que seja?
V
É possível verdadeiramente sentir ainda algum respeito por si mesmo, aquele que se dedicou a descobrir uma certa volúpia. na consciência da sua própria humilhação? Isto que digo não é e modo algum ditado por insípido remorso. E em geral, detesto dizer: ‑Perdoe‑me, papai, não o farei nunca mais!” Não porque seja incapaz de pronunciar estas palavras, mas talvez muito ao contrário, porque sou capaz demais!
E como um fato expresso, eu me precipitava para a frente precisamente quando não estava absolutamente para nada no ne­gócio. Era o que havia de mais repugnante. E com isto eu me enternecia, confessava‑me, chorava e, por fim, naturalmente, enga­nava‑me a mim mesmo, não dissimulando, entretanto: era meu co­ração quem me pregava estas partidas de mau gosto.
Neste caso nem sequer nos podíamos queixar das leis da na­tureza, embora essas leis me tivessem feito sofrer numerosos ve­xames no curso da minha existência. É penoso recordar tudo isto, e, de resto, naquele momento era muito penoso também. Com efeito, um minuto mais, e convenço‑me raivosamente de que tudo isto não é senão mentira, mentira ignóbil, infame comédia ‑ esta contrição, este enternecimento, estes juramentos de vida nova! Vós me perguntareis porque me torturava, porque me des­locava assim? Resposta: porque me aborrecia demais permanecer de braços cruzados; eis aí porque me entreguei a essas contorções. Era assim, asseguro. Observai bem, senhores, e verificareis então que as coisas se passam precisamente assim. Eu imaginava aven­turas e criava para mim uma existência fantástica para viver de um modo ou de outro. Quantas vezes, por exemplo, cheguei a me ofender, por motivos absurdos, de propósito: sabes bem, tu mesmo, que não há por que se zangar, e que te excitas a frio, mas te aqueces a tal ponto que chegas finalmente a te encolerizar sinceramente.
Tive sempre o gosto por estas histórias. Tanto e tão bem que finalmente perdi todo poder sobre mim mesmo. Uma vez, duas vezes mesmo, quis me forçar a me apaixonar. Sofri mesmo, se­nhores, garanto. Não se acredita nesse sofrimento, no fundo da alma, ri‑se dele, quase, mas sofre‑se verdadeiramente, de maneira muito real; fica‑se com ciúme, fora de si … E a causa de tudo isto, é o tédio, meus senhores; a inércia nos esmaga. O fruto le­gítimo, o fruto natural da consciência é com efeito a inércia: cru­zam‑se os braços com conhecimento de causa. já falei disso. Digo e repito com insistência: todos os homens simples e sinceros, todos os homens ativos, são ativos justamente porque são obtusos e me­díocres.
Como explicar isto? Eis aqui: por causa de sua estreiteza de espírito, eles tomam as causas secundárias, imediatas, pelas causas primeiras; e bem mais facilmente, bem mais rapidamente que os outros, imaginam ter encontrado razões sólidas, fundamentais, para sua atividade. Então eles se tranqüilizam; ora, isto é o principal. Para poder agir, com efeito, é preciso previamente atingir uma perfeita tranqüilidade e não mais conservar nenhuma dúvida. Mas como alcançar essa tranqüilidade de espírito? Onde poderia eu encontrar os princípios fundamentais sobre os quais possa construir? Onde está minha base? onde iria procurá‑la?
Excito‑me pensando. Por outras palavras, toda a causa em mim arrasta imediatamente uma outra após ela, ainda mais pro­funda, mais fundamental, e assim em seguida, até o infinito. Tal é a essência de todo o pensamento, de toda a consciência. Encon­tramo‑nos então diante das leis da natureza. E o resultado? É sempre o mesmo, lembrai‑vos! Falei‑vos antes em vingança (cer­tamente não penetrastes muito bem a coisa). Diz‑se: o homem se vinga porque considera que isso é justo. Encontra então o princípio fundamental que procurava: é a justiça. Sente‑se então completamente apaziguado e vinga‑se com toda a tranqüilidade e com pleno sucesso, estando persuadido que cumpre uma ação justa e honesta. Ora, quanto a mim, eu não vejo nisso nada de justo nem de bom; e, se, por conseguinte, tento me vingar, é pura malvadez da minha parte. A raiva poderia evidentemente vencer todas as hesitações e seria então capaz de desempenhar com sucesso o papel dessa razão fundamental, precisamente porque ela não pode ser considerada como tal. Mas que fazer, se não sou sufi­cientemente malvado? (Indiquei‑o desde o começo.)
Minha raiva é submetida a uma espécie de decomposição quí­mica, em virtude justamente dessas mesmas malditas leis da cons­ciência. Mal distingui o objeto do meu ódio, ei‑lo que se desva­nece, os motivos se dissipam, o responsável desapareceu, o insulto não é mais insulto, mas um golpe do destino, alguma coisa como uma dor de dentes, de que ninguém é culpado. E não me resta mais então outro consolo que quebrar meus punhos contra a parede. Na impossibilidade de encontrar as causas primeiras, re­nuncio então à minha vingança com um desdém afetado. Ah! se a gente tentasse abandonar‑se a seu sentimento, cegamente, sem reflexão alguma, sem procurar nenhuma razão, afastando para bem longe de si toda a consciência, nem que fosse por algum tempo Seria então uma coisa muito diferente! Maldize ou adora, mas não permaneças de braços cruzados. A partir do depois de ama­nhã ‑ último adiamento ‑ tu te desprezarás de ter conscientemente te enganado a ti mesmo. Resultado final: bolha de sabão, inércia.
Ah! senhores! é possível que eu me considere extremamente inteligente pela única razão de que, em toda a minha vida, nunca pude começar nem acabar fosse o que fosse. Não passo pois de um tagarela, de um tagarela inofensivo, de um impertinente como nós todos. Mas que fazer, senhores, se o destino de todo homem inteligente é tagarelar, isto é, derramar água numa peneira! VI
Oh! se eu não tivesse passado de um preguiçoso! como eu me teria respeitado a mim mesmo! Ter‑me‑ia respeitado precisamen­te porque me teria visto capaz ao menos de preguiça, porque teria possuído então ao menos uma qualidade definida, da qual estaria certo. Pergunta: Quem és? Resposta: um preguiçoso! Teria sido verdadeiramente muito agradável ouvir chamar‑se assim. Tu estás então definido de maneira positiva; há alguma coisa então a dizer da tua pessoa. .. “Um preguiçoso!” ‑ É um título, é uma função, é uma carreira, meus senhores! Não riais disto; é assim. Teria sido, assim, por direito, membro do primeiro clube do universo e teria passado todo o meu tempo a me respeitar. Conheci um sujei­to cujo orgulho era ser entendido em Laffitte. Considerava essa qualidade como uma virtude muito preciosa e não duvidou jamais dele. Morreu com a consciência não somente tranqüila, mas triunfante mesmo, e teve razão. Eu teria nesse caso escolhido uma carreira: teria sido um preguiçoso e um glutão; não um guloso vulgar, mas um gozador, interessando‑se por “tudo que é belo e sublime”. Que pensais? Há muito tempo sonho isso. “O belo e o sublime” pesam como chumbo sobre a minha nuca desde que fiz quarenta anos. Desde que tenho quarenta anos! Mas antes? teria sido muito diferente! Teria logo encontrado uma forma de atividade adaptada ao meu caráter: por exemplo, beber à saúde de todas as coisas “belas e sublimes”. Teria agarrado cada ocasião de beber à glória “do belo e do sublime”, depois de ter, previamente, deixado cair uma lágrima na minha taça. Eu teria então tor­nado todas as coisas “belas e sublimes”; teria descoberto “o belo e o sublime”, até nas torpezas mais incontestáveis; teria derramado prantos tio abundantes, como aqueles que deixa escapar uma espon­ja. Um pintor, por exemplo, compôs um quadro digno de Ghê, logo eu bebo à saúde desse pintor, porque amo tudo que é “belo e sublime”. Um poeta escreveu Como Agradar a Cada Um , e eu bebo depressa à saúde de cada um, ‑ porque amo “o belo e o sublime”. Isto me valerá o respeito geral; exigirei esse respeito; perseguirei com a minha cólera aquele que mo recusar. Vivo pacificamente, morro solenemente. Não é admirável? Não é esquisito? Teria deixado crescer um ventre tão opulento, teria erguido para o alto um nariz tão gorduroso, teria ornado meu rosto com um queixo tão vasto, que todos ao me verem teriam exclamado: “Eis aí um ser bem real, um ser positivo!” Como quiserdes, mas é bem agradável ouvir dizer tais coisas a seu respei­to em nosso século, tão essencialmente negativo.
VII
Mas não são senão sonhos de ouro!
Oh! dizei‑me qual foi aquele que primeiro declarou, que proclamou primeiro que o homem não comete vilanias senão porque não se apercebe de seus próprios interesses, e que se fosse escla­recido, se lhe abrissem os olhos sobre seus verdadeiros interesses, sobre seus interesses normais, cessaria imediatamente de cometer vilanias, e se tornaria no mesmo instante bom e honesto, pois, esclarecido pela ciência e compreendendo seus verdadeiros interesses; encontraria no bem sua própria vantagem? Como está entendido que ninguém pode agir conscientemente contra seu próprio interesse, o homem seria então por assim dizer colocado na necessidade de fazer o bem. Oh! criança! criança pura e ingênua!
Mas dar‑se-á que o homem, no curso desses milhares de anos, não agiu senão segundo o seu interesse? Que faremos então desses milhões de fatos que atestam que os homens, tendo embora perfeita consciência do seu interesse, o relegam a segundo plano e enveredam por um caminho totalmente diferente, cheio de riscos e de acasos? Não são, entretanto, forçados a isso; mas parece que querem precisamente evitar a estrada que se lhes indicava, para traçar livremente, caprichosamente, uma outra, cheia de difi­culdades, absurda, mal reconhecível, obscura. Ê que essa liberdade possui a seus olhos mais atrativos que seus próprios interesses … O interesse! Que é o interesse? Vós vos empenhais em me de­finir com toda a exatidão em que consiste o interesse do homem? Que direis vós se um belo dia se vem a descobrir que o interesse humano em certos casos pode ou mesmo deve consistir em desejar, não uma vantagem, mas um mal? Se é assim, se esse caso se pode apresentar, então tudo desmorona. Que pensais disto? Tal caso pode se apresentar?
Vós rides! Ride, senhores, mas respondei! Os interesses hu­manos estão enumerados com exatidão? Será que não existem alguns que não entram em nenhuma das vossas classificações e não podem aí encontrar lugar? Com efeito, tanto quanto sei, senhores, orga­nizastes vosso registro dos interesses humanos de acordo com as cifras médias das estatísticas e das fórmulas econômico‑científicas. Os interesses humanos são, pois, segundo vós, a riqueza, a tran­qüilidade, a liberdade, e assim por diante; de maneira que, o ho­mem que repelisse consciente e ostensivamente o vosso registro, deveria ser considerado, na vossa opinião, e, aliás, também na minha, como um obscurantista, um louco? Não é assim? Mas eis o que é bem estranho: como é possível que todos esses esta­tísticos, esses sábios, esses filantropos, deixem constantemente de lado um certo elemento, nos seus cálculos de interesses humanos? Eles não querem mesmo levá‑los em conta nas suas fórmulas, cujos resultados assim falseiam. A coisa não seria difícil, entretanto; por que não completar a lista e introduzir‑lhe o elemento em ques­tão ?… Mas a dificuldade provém de que esse elemento tão par­ticular não pode encontrar lugar em nenhuma classificação e não pode se inscrever em nenhuma lista. Eis um exemplo: eu tenho um amigo… Mas fico pensando nisso! Vós o conheceis também; ele é o amigo de todo o mundo.
Quando se prepara para agir, esse senhor começa por explicar­‑vos muito claramente, com belas e grandes frases, como lhe é preciso agir para se conformar à razão e à verdade. É pouco dizer: ele discutirá com paixão, com entusiasmo, interesses reais e normais da Humanidade; escarnecerá cegamente dos tolos que não compreendem nem seus verdadeiros interesses, nem o verdadeiro valor da virtude. Mas, um quarto de hora depois, nem mais cedo nem mais tarde, sem razão nenhuma, sob um impulso inte­rior mais poderoso que todas as considerações do interesse, ele fará uma coisa ridícula, uma tolice qualquer, e agirá então contra todos os preceitos que tinha citado, contra a razão, contra os seus interesses, contra tudo…
Previno‑vos, de resto, que meu amigo é uma personalidade coletiva e que é difícil, por conseqüência, condená‑lo sozinho. É precisamente a isto que quero chegar, senhores! Não há uma coisa, com efeito, que nos seja a todos mais cara que os nossos interesses mais preciosos? Por outras palavras (para não violar a lógica): não existe para nós um interesse (aquele que se deixa de lado, aquele de que acabamos de falar) mais interessante que todos os outros interesses, mais precioso que todos eles, e pelo qual o homem está pronto, se for preciso, a agir contra todas as regras, isto é, contra a razão, sacrificando‑lhe sua honra, sua paz, sua felicidade, todas as coisas belas e vantajosas, em uma palavra, nada senão para atingir uma coisa única que lhe é mais cara que todas as outras, que constitui a seus olhos seu interesse supremo?
‑ Sim, ‑ direis, ‑ mas é ainda de interesse que se trata… – Permiti! Vamos nos explicar; não é com jogos de palavras que se pode esclarecer a questão. O que faz a singularidade dessa coisa, desse interesse, é que ele destrói todas as nossas classificações e altera todos os sistemas edificados pelos amigos do gênero humano para a felicidade do homem. Em uma palavra, é um embaraço, um obstáculo. Mas antes de vos apontar essa coisa, quero me comprometer pessoalmente, e afirmo então com altivez que todos esses belos sistemas, que todas essas teorias que pretendem explicar à Humanidade em que consistem seus interesses normais, a fim de que ela se torne logo virtuosa e nobre no seu esforço para atin­gir os ditos interesses, declaro que tudo isso não passa de logísti­ca. Sim, pura logística! Crer que a renovação do gênero humano possa ‑realizar‑se fazendo‑lhe conhecer seus verdadeiros interesses, eqüivale, no meu modo de pensar, a admitir com Buckle que a civilização suaviza o homem, que se torna cada vez menos sanguinário, menos guerreiro. Buckle chegou a esse resultado muito logicamente, creio. Mas o homem nutre tal paixão pelos sistemas, pelas deduções abstratas, que está pronto * desfigurar conscientemente a verdade, pronto a fechar os olhos * tapar os ouvidos diante da verdade, tudo para justificar sua. lógica.
Tomo este exemplo porque é convincente. Olhai pois em torno de vós! O sangue corre em borbotões, alegremente mesmo, como champanha. Vêde nosso século XIX, no qual viveu Buckle! Vede Napoleão, o outro, o grande, e o de hoje! Vede a América do Norte e sua união, estabelecida para a eternidade! Vede enfim esse caricatural Schleswig‑Holstein. Então em que é que a civilização nos adoça? A civilização não faz mais que desenvolver em nós a diversidade das sensações… nada mais. E graças ao desenvolvimento dessa diversidade, é muito possível que o homem acabe por descobrir uma certa volúpia no sangue. Isto aliás já aconteceu.
Notastes já que os sanguinários mais refinados foram sempre senhores muito civilizados, junto dos quais todos esses Átila, todos esses Stenka Razine fariam uma figura bem mesquinha. Se esses senhores se fazem notar menos, é que se encontram mais freqüentemente e estamos habituados com isso. Mas se a civiliza­ção não tornou o homem mais sanguinário, tornou‑o sem dúvida mais sordidamente, mais covardemente sanguinário. Antigamente, o homem considerava que tinha o direito de derramar sangue, e era com a consciência bem tranqüila que destruía o que bem lhe parecia. Hoje, embora considerando a efusão de sangue uma ação condenável, nem por isso deixamos de matar, e mais freqüentemente ainda do que antes. Isto vale mais? Decidi vós mesmos. Diz‑se que Cleópatra (desculpai este exemplo tirado da História Romana) divertia‑se em espetar agulhas no seio das escravas e experimentava grande prazer com seus gritos e contorções. Dir‑me‑eis que isso se passava numa época relativamente bárbara, que nosso século é bárbaro também, pois continuam a espetar agulhas na carne, que o homem, se bem que tenha adquirido uma compreensão mais clara das coisas que naqueles recuados tempos,, não pôde ainda se habituar à seguir as normas da razão e da ciência. Mas estais certos, não obstante, que ele se habituará quando se desfizer com­pletamente de certas tendências ruins, e quando o senso comum e a ciência tiverem completamente reeducado a natureza humana, e a tiverem orientado para um caminho normal, Estais certos de quê então o homem deixará de se enganar deliberadamente e se verá por assim dizer na impossibilidade de querer opor sua vontade aos seus interesses normais.
Mas há mais ainda: então, dizeis, a ciência ensinará ao homem (mas na minha opinião, isto já é um luxo supérfluo) que ele nunca teve vontade, nem caprichos, e que não passa, em suma, de uma tecla de piano, de um pedal de órgão; o que realiza, por conse­guinte, realiza‑o, não segundo sua vontade, mas conforme às leis da natureza. Basta pois descobrir essas leis, e o homem então não poderá mais ser considerado responsável por suas ações, e a vida se lhe tornará extremamente fácil. Todas as ações humanas poderio ser evidentemente calculadas matematicamente, de acordo com essas leis, como se faz para os logaritmos, até q centésimo milésimo, e serão inscritas nas efemérides, ou far‑se‑ão livros esti­máveis no gênero dos nossos dicionários enciclopédicos, onde tudo ficará tão bem calculado e previsto, que não haverá mais aventuras, nem mesmo mais ações.
Então, e sois vós quem continua a falar, ver‑se‑á estabelecerem­‑se novas relações econômicas, que serão, por sua vez, fixadas com precisão matemática, que todas as dúvidas desaparecerão logo, pela simples razão de que se terão descoberto todas as soluções. Então se edificará um vasto palácio de cristal. Então veremos o Pássaro de Fogo, então… Não se pode certamente garantir (sou eu que falo agora) que não será terrivelmente fastidioso (que fazer, com efeito, se tudo está calculado e fixado de antemão?); em compensação, serão todos muito sábios. Evidentemente o tédio pode ser mau conselheiro: é o tédio que nos faz enterrar agulhas de ouro na carne… Mas isto não é nada ainda. O que é mais grave (sou eu quem continua a falar) é que talvez nos acharemos então muito felizes de ter à mão agulhas de ouro: o homem é bruto, terrivelmente bruto, ou melhor dizendo, não é tão bruto quanto ingrato, e é difícil encontrar quem seja mais ingrato que ele. Eu não ficaria pois admirado se, no meio dessa felicidade, se levantasse de súbito um cavalheiro despojado de elegância, com o rosto “re­trógrado” e escarninho, e que nos dissesse, pondo as mãos na cintura: “Pois bem, senhores! Se jogássemos por terra, de um só pontapé, toda essa felicidade tranqüila, nada mais que para mandar os logaritmos ao diabo e poder recomeçar a viver segundo a nossa tola fantasia?” Isso não seria ainda nada; mas o mais terrível é que esse personagem encontraria certamente discípulos. O homem é feito assim. E tudo isso por causa de uma coisa ínfima que se poderia desprezar completamente, parece: tudo isso porque todo e qualquer homem aspira, sempre e em todas às si­tuações, a agir segundo sua vontade e não de acordo com as pres­crições da razão e do interesse; ora, vossa vontade pode e deve mesmo, por vezes (esta idéia me pertence, como propriedade par­ticular), se opor aos vossos interesses. Minha vontade livre, meu arbítrio, meu capricho, por estapafúrdio que seja, minha fantasia sobreexcitada até a demência, eis precisamente a coisa que se põe de lado, o interesse mais precioso que não pode encontrar lugar em nenhuma de vossas classificações, e que quebra em mil pedaços todos os sistemas, todas as teorias.
Onde, pois, aprenderam os nossos sábios que o homem tem necessidade de não sei que vontade normal e virtuosa? Por que imaginaram eles que o homem tem aspirações após uma certa von­tade racional e útil? O homem não aspira senão depois de uma vontade independente, qualquer que seja o preço e sejam quais forem os resultados. Mas só o diabo sabe o que essa vontade vale…
VIII
“Ah! ah! ah! mas a vontade, isso é coisa que não existe!” ‑vós me interrompeis rindo. ‑ “A ciência já conseguiu tão bem dissecar o homem que, a partir de agora, sabemos que a vontade e o que se chama de livre arbítrio não passam de…”
Permiti, senhores! Eu próprio me preparava para começar assim. Tive mesmo medo, confesso‑vos: ia gritar que a vontade depende, sabe o diabo de quê, e que talvez se trate de algo muito bom, mas lembrei‑me da ciência e mordi a língua: foi então que me interrompestes. Com efeito, se se conseguir descobrir a fórmula de todos os nossos desejos, de todos os nossos caprichos, isto é, de onde provêm, de acordo com que leis se desenvolvem, como se reproduzem, para que fins tendem em tais ou tais casos, etc., é provável, então, que o homem deixe logo de querer, nem sequer é provável, é certo. Que prazer haverá em não querer senão em conformidade com tábuas de cálculos? Mas isto é dizer pouco ainda: o homem cairá imediatamente na categoria de uma simples peça. Na verdade que é um homem despojado de desejo, de vontade, senão uma peça, uma transmissão?! Que pensais disto? Examinemos pois as probabilidades: tal ou tal coisa poderá se produzir ou não?
‑ Hum! ‑ dizeis. ‑ Nossos desejos se enganam muito fre­qüentemente, porque nos enganamos na avaliação dos nossos interesses. Acontece‑nos querermos coisas ineptas porque, com a ajuda da nossa estupidez, cremos nos aproximarmos assim do que consi­deramos como particularmente interessante. Mas quando tudo esti­ver explicado, quando tudo for posto em ordem e fixado de antemão (o que é muito possível, pois é ridículo, pois é estúpido crer que certas leis da natureza permanecerão indecifráveis), então, evidente­mente, não haverá mais lugar para o que se chama de desejos. Se nossa vontade entra então em conflito com a, nossa razão, pode­remos raciocinar e não querer, porque é impossível a um ser ra­cional desejar inépcias, contradizer conscientemente a razão e pro­curar prejudicar‑se… E urna vez que todos os desejos e todos os raciocínios poderão ser calculados antecipadamente, porque estarão descobertas as leis do nosso suposto livre arbítrio, tornar‑se-á pos­sível, um dia, (eu não gracejo) organizar uma espécie de lista, e ter vontade, reportando‑nos a ela. Admitamos que me seja pro­vado um dia que se eu mostrei o punho fechado a alguém, é que não podia agir de outra forma, e que devia fechar o punho precisamente assim; de que liberdade disponho eu ainda, sobretudo se sou eu próprio instruído e se possuo um diploma? Posso então calcular minha existência com trinta anos de antecedência. Numa palavra, se isto se realizar, não teremos mais nada a fazer senão compreender. E, em geral, devemos repetir‑nos sem descanso que nesse instante e precisamente nessa circunstância, a natureza não se preocupa conosco de maneira nenhuma, e que é preciso aceitá‑la como é, e não como a enfeita a nossa fantasia, e que se aspiramos realmente às fórmulas, às efemérides, aos alambiques, não há nada a fazer, é preciso aceitar o alambique; senão ele passará perfeita­mente sem a nossa aprovação,
Sim, mas é aqui justamente que me aparece a dificuldade. Mas, perdoai‑me por me ter posto assim a filosofar. Não o esqueçais: tenho quarenta anos de subsolo. Permiti‑me soltar as rédeas à minha fantasia. Vede, senhores, a razão é uma coisa excelente; isto é incontestável; mas a razão é a razão e não satisfaz senão a faculdade de raciocínio do homem, enquanto que o desejo é a expressão da totalidade da vida, isto é, da vida humana inteira, inclusive a razão e seus escrúpulos; e, se bem que nossa vida, tal como se exprime assim, se revista freqüentemente de um aspecto muito velhaco, nem por isso é menos vida, e não a extração da raiz quadrada.
Assim comigo, por exemplo: eu quero viver, naturalmente, a fim de satisfazer minha faculdade de existência em sua totalidade e não para satisfazer unicamente a minha faculdade de raciocínio, que não representa, em suma, senão a vigésima parte das forças que estão em mim. Que sabe a razão? A razão não sabe senão o que aprendeu (ela não saberá nunca outra coisa, provavelmente; e embora isso não seja uma consolação, não o devemos dissimular), enquanto que a natureza humana age com todo o seu peso, por assim dizer, com tudo que ela contém em si, consciente e incons­cientemente; acontece‑lhe cometer disparates, mas vive.
Suspeito, senhores, que me considerais com um certo desdém: vós me repetis que é impossível a um homem esclarecido e culto, ao homem do futuro, em uma palavra, que lhe é impossível querer deliberadamente o que for contrário aos seus interesses; é claro como as matemáticas. Estou inteiramente de acordo: sim, é matematicamente exato. Mas repito‑vos pela centésima vez: existe um caso, um único, em que o homem pode deliberadamente, expressa­mente, rebuscar o que lhe é desfavorável, o que lhe parece estúpido, inepto, com o único fim de se subtrair à obrigação de escolher o aproveitável, o digno. Porque essa inépcia, esse capricho, talvez seja, efetivamente, meus senhores, o que há de mais vantajoso para nós sobre a terra, sobretudo em certos casos. É possível mesmo que essa vantagem seja superior a todas as outras, mesmo quando nos é manifestamente prejudicial e contradiz as conclusões mais justas do nosso raciocínio. Conserva‑nos, com efeito, o principal, o que nos é mais caro, isto é, nossa personalidade. Alguns afir­mam. que isso é precisamente o que temos de mais precioso. A vontade pode querer por vezes se pôr de acordo com a razão, so­bretudo se não se abusa desse acordo e se dele se aproveita mo­deradamente. Isto pode ser útil e digno de aprovação. Mas, muito freqüentemente, o mais freqüente mesmo, é a vontade recusar­‑se obstinadamente a concordar com a razão, e então… então… Mas sabeis que isto também é extremamente útil e digno de apro­vação?
Admitamos, senhores, que o homem não é um bruto. Não se dizer, com efeito, que ele o seja, porque se o fosse, quem poderia então reivindicar a inteligência? Mas se não é um bruto, é no mínimo monstruosamente ingrato, extraordinariamente ingra­to. Creio mesmo que é a melhor definição que se possa dar do homem: um ser com dois pés e ingrato. Mas não é tudo ainda: esse não é ainda o seu principal defeito. Seu principal defeito é o mau caráter, que ele conservou inalterável, desde o dilúvio uni­versal até o período schleswig‑holsteiniano de nossa História. Mau caráter, e, em conseqüência, conduta insensata, porque se sabe há muito tempo, que esta decorre daquele. Tentai, lançai um olhar pela História da Humanidade! Que vedes? É grandioso, dizeis? ‑ Sim, bem pode ser; só o colosso de Rodes já representa alguma coisa. E não é em vão que M. Anajevski nos lembra que, segundo uns, o colosso era uma obra humana, ao passo que outros afirmavam que era o produto das forças naturais. Estareis choca­dos pela variedade? Sim, há nisso uma certa variedade: para disso nos convencermos, basta lançarmos uma olhadela pelos grandes uniformes civis e militares, e se lhes ajuntarmos as pequenas far­das, perder‑nos‑emos completamente; nenhum historiador resistirá a isso. Monótono, direis? ‑ É possível. Não se faz senão guer­rear, com efeito. Luta‑se hoje, lutou‑se ontem, lutar‑se-á amanhã mesmo um pouco monótono demais, confessai!
Numa palavra, pode‑se dizer tudo da História Universal, tudo que se apresentar à imaginação mais desregrada. Mas é impossível dizer que ela é racional; equivocar‑vos‑eis desde a primeira sílaba. E, ademais, eis ainda o que se passa constantemente: homens apa­recem, sensatos e de bons costumes, filantropos, cujo fim é levar uma existência racional e honesta, a fim de agirem pelo exemplo sobre seus semelhantes e de provar‑lhes que é possível viver sabiamente. Mas que acontece, então? Sabe‑se que grande número desses amantes da sabedoria acabam, mais cedo ou mais tarde, por trair suas idéias e se comprometem em escandalosas histórias.
Pois bem! Eu vos pergunto: o que se pode então esperar do homem, desse ser dotado de qualidades tão estranhas? Tentai derramar sobre ele todos os bens da terra; mergulhai‑o na felici­dade, tão profundamente, que não se distingam mais na superfície senão algumas bolhas de ar: satisfazei suas necessidades econômicas tão completamente que ele não tenha mais nada a fazer senão dormir, comer pães de mel, e pensar nos meios de fazer durar a His­tória Universal ‑ pois bem! mesmo nesse caso o homem, por pura ingratidão, por necessidade de se emporcalhar, cometerá, à guisa de agradecimento, uma vilania qualquer. Correrá até o risco de perder os seus pães de mel e procurará as inépcias mais perigo­sas, os absurdos menos proveitosos, só para misturar a essa sabe­doria tão positiva um elemento fantástico, pernicioso. São precisa­mente os seus sonhos mais fantásticos, é a sua asnice mais vulgar, que ele pretenderá conservar, unicamente para provar a si mesmo (como se isso fosse verdadeiramente tão necessário) que os homens são homens e não teclas de piano, sobre as quais se dignam tocar, é verdade, as leis da natureza, que tocam de resto com tal brio que muito em breve não será possível querer seja o que for sem se referir aos calendários. E depois, mesmo que se achasse que o homem não passa realmente de uma tecla de piano, se se chegasse a lho demonstrar matematicamente, mesmo nesse caso, ele não toma­ria juízo e cometeria alguma incongruência, apenas para marcar bem sua ingratidão e perseverar no seu capricho. E, no caso em que os outros meios lhe faltassem, ele se afundaria na destruição, no caos; desencadearia não sei que males, mas não faria finalmente senão o que lhe desse na cabeça. Lançará sua maldição sobre o mundo, e como só ao homem é dado amaldiçoar (isto é bem um privilégio seu, que o distingue muito particularmente dos outros rimais) alcançará assim os seus fins, isto é, convencer‑se de que um homem e não uma peça.
Se me disserdes que o caos, as trevas, as maldições, que tudo isso pode também ser calculado de antemão, se bem que a só possibilidade desse cálculo irá paralisar o impulso do homem e que a razão triunfará, assim, uma vez mais, então eu vos confessarei que o homem só terá um meio de fazer o que lhe apraz, que é perder a razão e tornar‑se completamente louco.
Isto é óbvio para mim; eu vo‑lo garanto, pois parece claro que desde todos os tempos a grande preocupação do homem foi pro­vir sem cessar a si mesmo, que ele era um homem e não uma engrenagem. Com isso arriscava a pele, mas provava‑o: vivia como um troglodita, mas provava‑o. E como, depois de tudo isto, não pecar, como não nos felicitarmos por não estarmos ainda nessa situação e por a nossa vontade depender ainda não se sabe de quê?
Vós exclamais (se me fazeis ainda a honra de gritar) que nin­guém pensa em me privar de minha vontade, que a gente só se agita para arrumar as coisas de tal maneira, que por si mesma, por sua própria iniciativa, minha vontade possa pôr‑se de acordo COM os meus interesses normais, com as leis naturais, com a arit­mética.
Ora vamos, senhores! Que restará da minha vontade, quando tudo estiver nas tábuas de calcular e quando não houver mais que “duas vezes dois quatro”? Duas vezes dois serão quatro sem que minha vontade se incomode com isso. A vontade quer saber de coisa bem diferente!
IX
Senhores, gracejo evidentemente e eu próprio sei que meus gracejos não são muito bons; mas, aliás, não se trata unicamente de gracejos. É rangendo os dentes, talvez, que gracejo. Senhores, há problemas que me atormentam: ajudai‑me a resolvê‑los. Assim, quereis libertar o homem de seus antigos hábitos e corrigir‑lhe a vontade segundo os dados da ciência e conforme ao senso comum. Mas como sabeis que o homem pode e deve ser corrigido? De onde concluístes que a vontade do homem deve necessariamente ser educada? Em uma palavra: por que pensais que essa educação lhe é realmente útil? E para dizer tudo: por que estais tão firme­mente persuadidos que é sempre vantajoso para o homem não contradizer seus interesses normais, reais, garantidos pelo raciocínio e pela aritmética? Isto não é, em suma, senão uma suposição vossa. Admitamos mesmo que tal seja com efeito a lei lógica; mas será verdadeiramente a lei humana? Pensais, talvez, que sou louco, senhores? Permiti‑me que me explique.
Admito: o homem é um animal essencialmente construtor, obri­gado a se dirigir conscientemente para um fim qualquer; é um engenheiro. Deve, pois, constantemente traçar caminhos novos, não importa em que direções. Mas é talvez por causa disso, preci­samente que tem por vezes desejo de escapar pela tangente, pre­cisamente porque está condenado a traçar um caminho e também porque, por estúpido que seja o homem de ação, ele adivinha por vezes que toda estrada leva sempre a alguma parte, e que não é a sua direção que importa, mas o próprio fato de que ela o conduz para um lugar qualquer, a fim de que o menino sabido não se lembre de desprezar seu ofício de engenheiro e não se abandone à preguiça, a qual é, como se sabe, a mãe de todos os vícios. É indiscutível que o homem gosta muito de construir e traçar cami­nhos; mas como acontece então que ele ame tão apaixonadamente a destruição e o caos? Dizei‑me. Mas eu mesmo gostaria de vos dizer algumas palavras a esse respeito.
Não será que ama tanto a destruição e o caos (Se os ama às vezes, é indiscutível) porque tem instintivamente medo de atingir o fim e terminar o edifício que constrói? O que sabeis disso? Ele não ama talvez esse edifício, senão de longe, e não de perto. Apraz‑lhe, talvez, construi‑lo, mas não morar nele, e está pronto talvez a abandoná‑lo aos animais domésticos. às formigas, aos car­neiros, etc. As formigas, sim, têm outros gostos; possuem nesse gênero um edifício verdadeiramente extraordinário, construído para os séculos, o formigueiro.
Foi por um formigueiro que começaram as honradas formigas e é provável que tal seja também o termo da sua carreira, o que faz honra à sua constância e ao seu senso prático. Mas o homem é um ser versátil, e é possível que, à semelhança do jogador de xadrez, não ame senão a ação mesma e não o fim a atingir. E quem sabe? (não se pode garantir) é possível que o único fim para o qual tende a Humanidade não consista senão nesse esforço, nessa ação; ou por outra: a vida não teria fim exterior, o qual não pode evidentemente ser senão aquele “duas vezes dois quatro”, isto é, uma fórmula. Ora, senhores, duas vezes dois quatro é um princípio de morte e não um princípio de vida. Em todo o caso, o homem sempre teve medo desse “duas vezes dois quatro” e eu também tenho.
É verdade que o homem não se ocupa senão da procura desses “duas vezes dois quatro”; atravessa oceanos, arrisca a vida em sua perseguição; mas quanto a encontrá‑los, quanto a apanhá‑los real­mente ‑ juro‑vos que tem medo, pois ele se dá conta que, uma vez encontrados, nada mais tem a fazer. Depois de terminarem o trabalho e de terem recebido, os operários vão ao botequim, para acabarem a noite na cadeia; têm então a sua conta ao menos por uma semana. Enquanto que o homem, que se tomará ele? Em todo o caso, observa‑se constantemente nele certo constrangimento, sempre que atinge um fim. Tenta aproximar‑se do fim, mas tão logo o atinge, não está mais satisfeito; e isto é verdadeiramente bem cômico. Em uma palavra: o homem é construído de uma maneira muito cômica, e tudo isto faz o efeito de um calemburgo. Mas seja como for, “duas vezes dois quatro” é uma coisa bem insu­portável. “Duas vezes dois quatro”, na minha opinião, respira impudência. “Duas vezes dois quatro” nos desfigura insolentemen­te. De mãos nos quadris, ele se nos atravessa no caminho e nos cospe na cara. Admito que “duas vezes dois quatro” seja uma coisa excelente, mas se é preciso louvar tudo, eu vos direi que “duas vezes dois cinco” é também às vezes uma coisinha muito encantadora.
E por que pois estais tão inabalavelmente, tão solenemente convictos de que só é necessário o normal, o positivo, o bem‑estar, em uma palavra? A razão não se engana em seus juízos? E possível que o homem não ame senão o bem‑estar. Não é possível que ele ame na mesma medida o sofrimento? Não é possível que o sofrimento lhe seja tão vantajoso quanto o bem‑estar? O homem se põe por vezes a amar apaixonadamente o sofrimento; isso é um fato. Não há necessidade de consultar a esse propósito a História Universal. Indagai vós mesmos se unicamente sois ho­mens, e se tendes vivido, por pouco que seja. No que toca à minha opinião pessoal, dir‑vos‑ei que é mesmo inconveniente só amar o bem‑estar. Está bem? Está mal? Isso eu não sei, mas às vezes é agradável quebrar alguma coisa. Não é precisamente o sofrimento que defendo aqui, ou o bem‑estar: é meu capricho, e insisto para que ele me seja garantido, se for preciso. Nas comédias, por exemplo, não se admitem os sofrimentos, eu sei; tampouco podemos admiti‑los num palácio de cristal: há dúvida, há negação no so­frimento, mas o que seria então de um palácio de cristal do qual se pudesse duvidar? Ora, estou certo de que o homem não re­nunciará jamais ao verdadeiro sofrimento, isto é, à destruição e ao caos.
O sofrimento! Mas é a causa única da consciência! Eu vos declarei, é verdade, no início, que a consciência, na minha opinião, é um dos maiores males do homem; mas sei que o homem a ama e não a trocará por nenhuma ‑satisfação, seja qual for. A consciência, por exemplo, é infinitamente superior a “duas vezes dois quatro”. Depois de “duas vezes dois”, não resta evidentemente mais nada, não somente a fazer, mas mesmo a conhecer. A única coisa que nos resta, então, é tapar nossos cinco sentidos e mergu­lharmos na contemplação. Com a consciência chega‑se, é verdade, a um resultado idêntico, isto é, à inação, mas poder‑se‑á, então, pelo menos dar‑lhe uma chicotada, de vez em quando, o que vi­vifica um pouco o espírito, apesar de tudo. É muito reacionário, mas sempre vale mais do que nada.
X
Credes no palácio de cristal, indestrutível, para a eternidade, ao qual não se poderá mostrar a língua, nem mostrar os punhos às escondidas. Pois bem! eu, se desconfio do palácio de cristal, é talvez justamente porque é de cristal e indestrutível e porque não se poderá lhe mostrar a língua, mesmo às escondidas.
Vede: se em lugar de um palácio de cristal eu só disponho de um galinheiro, quando chove, eu me insinuarei talvez no ga­linheiro, para fugir à chuva, mas ficando‑lhe embora muito agrade­cido por ter me preservado, não tomarei meu galinheiro por um pa­lácio. Rides, dizeis‑me que em semelhante caso palácio e galinheiro se eqüivalem. Sim, responderei, se se vivesse apenas para não estar molhado.
Mas que fazer, se se me meteu na cabeça que não se vive somente para isso e que, se se vive, é num palácio que é preciso se instalar? Isto é minha vontade, isto é meu desejo, Vós não conseguireis me arrancar esta vontade, senão quando tiverdes mo­dificado meus desejos. Pois bem! modificai‑os, apresentai‑me um outro fim, oferecei‑me um outro ideal! Mas, enquanto espero, recuso‑me a tomar um galinheiro por um palácio de cristal. É possível que o palácio de cristal não seja senão um mito, que as leis da natureza não o admitam e que eu o tenha inventado por tolice, impelido por certos hábitos irracionais da nossa geração. Mas que me importa que ele seja inadmissível! Que me importa, pois que ele existe nos meus desejos, ou, para dizer melhor, pois que existe tanto quanto existem meus desejos? Continuais a rir, penso. Ride tanto quanto vos agrade! Aceitarei todas as zom­barias, mas recusar‑me‑ei a me declarar saciado, quando ainda tenho fome; não me contentarei com um compromisso, com um zero se renovando indefinidamente, pela única razão de que está confor­me as leis da natureza e existe realmente. Não admitirei que o coroamento dos meus desejos possa ser uma casa de tijolos, com alojamentos a preço módico, arrendados por mil anos e osten­tando a tabuleta do dentista Wagenheim. Destruí meus desejos, derrubai meu ideal, apresentai‑me um fim melhor e eu vos seguirei. Dir‑me‑eis, talvez, que não vale a pena ocupardes‑vos de mim; mas neste caso posso vos responder do mesmo modo. Nós discuti­mos seriamente, e se não vos dignardes me conceder vossa atenção, pois bem! não vou chorar por isso. Eu tenho meu subsolo.
Mas, enquanto existo, enquanto desejo, que minhas mãos se. quem se levo um tijolinho que seja a essa casa! Não me digais que eu mesmo renunciei cedo ao palácio de cristal, pelo único mo­tivo de não lhe poder mostrar a língua. Se falei assim, não é que eu goste tanto de mostrar a língua. Acontece porém que, e é isto precisamente que me irrita, de todos os vossos edifícios não há um ao qual não se possa mostrar a língua. Ao contrário, eu faria cortar minha língua, por gratidão, se se arranjassem as coisas de tal maneira que eu não tivesse mais desejo de a mostrar. Que me importa que as coisas não possam se arranjar assim e que seja preciso contentarmo‑nos com alojamentos a preços módicos! Por que te­nho eu tais desejos? Não sou feito assim, senão para poder ve­rificar que essa constituição não é senão uma brincadeira de mau gosto? É esse verdadeiramente o único fim? ‑ Não o admito.
De resto, sabeis o que vou dizer‑vos? estou persuadido de que nós outros, homens do subsolo, devemos ser mantidos na trela. O homem do subsolo é capaz de permanecer silencioso no seu subsolo durante quarenta anos; mas, se sai do seu buraco, ele de­sabafa, e então fala, fala, fala…
XI
O fim dos fins, senhores, é não fazer nada, absolutamente nada. A inércia contemplativa é preferível seja ao que for. Assim pois, viva o subsolo! Se bem, que eu tenha dito antes que inve­java o homem normal até a derradeira gota da minha bílis, quando o vejo tal qual é, renuncio ao ser normal (não cessando todavia de ter inveja dele). Não! não! apesar de tudo o subsolo vale mais. Lá ao menos se pode… Ah! cá que minto de novo! Minto, porque sei, tão claramente quanto duas vezes dois são quatro, que não é o subsolo que vale mais, mas algo muito dife­rente a que aspiro, mas que não posso descobrir. Para o diabo o subsolo!
Se eu pudesse crer ao menos numa só palavra do que escrevo aqui! juro‑vos, senhores, que não creio em uma só palavra, em uma única e miserável palavrinha! Ou melhor dizendo: creio, talvez, mas sinto no mesmo momento, suspeito, não sei por quê, que minto descaradamente.
‑ Mas, nesse caso, por que escreveu tudo isto? ‑ pergun­tareis certamente.
Que teríeis dito se eu vos tivesse encerrado durante quarenta anos, sem fazer nada, e se, decorrido esse tempo, eu fosse visi­tar‑vos no vosso subsolo para verificar no que vos tínheis tornado?
Bem que eu gostaria de vos ver lá! Pode‑se deixar durante quarenta anos um homem só e sem ocupação?
“Mas não é vergonhoso, não é humilhante!” ‑ me direis talvez, meneando a cabeça, com desprezo, ‑ “Você tem sede de vida, mas quer resolver as questões vitais por meio de mal­‑entendidos lógicos. E que obstinação! Que impudência com isso!
Mas tem medo, apesar de tudo. Você diz inépcias, mas sente‑se feliz com elas. Diz insolências, mas tem medo e se desculpa. Declara que não receia ninguém, mas busca as nossas boas graças. Você nos assegura que range os dentes, mas graceja ao mesmo tem­po, para nos fazer rir. Sabe que as suas sentenças não valem nada, mas parece muito satisfeito com a sua literatura. É possível que você tenha sofrido, mas não tem nenhum respeito pelo. seu sofri­mento. Há certa verdade em suas palavras, mas falta‑lhes pudor. Sob a ação da vaidade mais mesquinha, você traz a sua verdade t para a praça pública, expõe‑na no mercado, para alvo de chacota. Você tem alguma coisa a dizer, mas o temor faz‑lhe escamotear a última palavra, pois é insolente, mas não audaz. Gaba a sua consciência, mas não é capaz senão de hesitação, porque embora sua inteligência trabalhe, seu coração está emporcalhado pela libertinagem; ora, se o coração não é puro, a consciência não pode ser clarividente, nem completa. E como você é importuno, como é molesto! Que palhaçada, a sua! Mentira tudo isso! Mentira! Mentira!”
Todas estas palavras, fui eu quem mas “, evidentemente. Elas também provêm do subsolo. Durante quarenta anos, prestei atenção por uma pequena fenda a esses discursos. Eu próprio os compus, pois não tinha outra coisa a fazer. Por isso foi‑me fácil decorá‑los e imprimir‑lhes; uma forma literária.
Mas, pudestes crer, verdadeiramente, que eu ia imprimir tudo isto e vo‑lo dar para ler? E eis ainda o que não compreendo: por que me dirijo a vós, chamando‑vos de “senhores”, como se fósseis leitores meus? Não se publicam, não se dão a ler a nin­guém as confidências que eu me preparo para fazer aqui. EU, em todo o caso, não sou suficientemente forte para agir assim, e, de resto, não vejo a necessidade disso. Mas, vede, veio‑me alma fantasia, e quero realizá‑la custe o que custar. Eis do que se trata:
Entre as lembranças que cada um de nós possui, há algumas que não contamos senão aos nonos amigos. Há outras ainda que não confessaremos nem mesmo aos nossos amigos, que não repe­tiremos senão a nós mesmos, e aliás, sob o signo do segredo. Mas existem enfim coisas que o homem não consente nem em confessar a si mesmo. No curso de sua existência, todo homem honesto acumulou dessas lembranças suficientemente. Direi mesmo que seu número é tanto mais importante, quanto o homem é mais honesto. Eu, em toda o caso, não faz muito tempo que me decidi a me lem­brar de certas antigas aventuras minhas; até aqui, evitei‑as, e não sem um tanto de inquietação. Ora, agora, quando as evoco e quero mesmo anotá‑las, agora tenho a prova: é possível ser franco e sincero, ao menos cara a cara consigo mesmo, e poder‑se‑á dizer toda a verdade? Observarei a este propósito que Heine assegura que não podem existir autobiografias exatas, e que o homem mente sempre, quando fala de si mesmo.. Rousseau, com seu ponto de vista, certamente nos enganou nas sua Confissões e mesmo delibe­radamente, por vaidade. Estou certo de que Heine tem razão: compreendo muito bem que nos possamos sobrecarregar de crimes abomináveis, apenas por vaidade, e compreendo também o que pode ser esse sentimento. Mas Heine tinha em vista as confissões pú­blicas; ora, eu não escrevo senão para mim sozinho e declaro de lima Vez por todas que, se pareço dirigir‑me ao leitor, é simples­mente iam processo de que me sirvo para maior facilidade. Não é senão uma forma, uma forma vazia; e quanto aos leitores, não. os terei jamais. já o declarei.
Não quero ser incomodado em nada na redação das minhas notas. Não observarei nenhuma ordem, nenhum sistema. Escre­verei simplesmente o que me lembrar.
Mas vós poderíeis me pegar na palavra desde o começo e me perguntar: se é verdade que não pensa em seus leitores, por que então combina consigo mesmo ‑ e no papel ‑ ainda! ‑ que não observará nenhuma ordem, nenhum sistema, que registrará o que lhe passar pela cabeça, etc.? Por que se explica? Por que essas desculpas ?
Pois bem! eis aí! é assim!
Há, de resto, aí, um caso psicológico interessante. É possível que eu seja muito simplesmente um covarde. Mas é possível também que imagine diante de mim um público, a fim de não perder o sentido das ‑conveniências. É possível ter milhares desses motivos…
Mas há ainda outra coisa: por que, em suma, pus‑me a escre­ver?’ Se não é para o público, não posso evocar minhas lem­branças sem as lançar ao papel?
Com efeito, mas quando estiverem fixadas no papel, adqui­rirão um aspecto mais solene. Isto me constrangerá, julgar‑me‑ei melhor e meu estilo ganhará. Demais, é possível que isto me traga certo consolo. Assim, hoje, estou particularmente oprimi­do por uma lembrança longínqua; surgiu em mim muito nitida­mente há alguns dias, e, desde então, me persegue sem tréguas, como um desses motivos musicais que não pretendem vos largar. Ora, é preciso absolutamente que eu me desembarace dela. Tenho centenas de recordações desse gênero; mas uma delas às vezes des­perta de súbito e me agarra pela garganta. Eu imagino, não sei mesmo por quê, que se a registrar, ficarei livre. Por que não tentaria?
E depois, enfim, eu me aborreço e nunca faço nada. Escrever as lembranças é um trabalho. Diz‑se que o trabalho torna o ho­mem bom e honesto. É então uma oportunidade que se me ofe­rece…
Fiódor DostoiévskiExtraído do livro “Os Mais Brilhantes Contos de Dostoiévski”, 1970


























































































































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