Nasci com cara de índio, dizem. Mas, só
soube disso depois. Colegas de escolas assim me definiram tão logo me viram
chegando com um uniforme apertado fazendo conjunto com um short e um sapato com
número menor que meu pé.
Foi uma experiência muito estranha para
mim, que me deixou um pouco doido da cabeça, meio traumatizado. É que eu cresci
em uma pequena comunidade no interior do Pará. Era uma aldeia, mas lá ninguém
se apelidava de índio. Todos tínhamos nome, sobrenome, parentesco, amigos e
animais de estimação. O que não tinha era energia elétrica e por isso a vida
começava cedo, para aproveitar bem a luminosidade do sol.
Aprendi, com isso, a respeitar a
natureza desde que era menino. Aprendi a olhar para o tempo e reconhecer suas
mensagens: chuva, sol quente, tempestade, frio, lua cheia ou minguante. Aprendi
a respeitar os passos dos outros seres e a não fazer xixi no igarapé. Aprendi
caçar calangos usando armadilhas ou tacape e a flechar pequenos animais a uma
distância segura. Também aprendi a tomar banho de chuva, nadar com
desenvoltura, esculpir meus brinquedos nas taquaras e caroços de manga e andar
na mata sempre atento aos sinais de perigo.
Apesar de tudo o que sabia, de escola e
de amizade confusa nada sabia. Por isso, me zanguei quando minha mãe me obrigou
a colocar a tal farda para ir à escola.
– É para você aprender coisas novas –
ela disse.
– É para você crescer inteligente – meu
pai disse.
– É para você saber mais que nós – meu
tio disse.
– É para você ficar civilizado – meu
irmão mais velho ironizou.
Quem não disse nada foi meu avô, que
ficou olhando de longe um tanto desconfiado. Observou tudo o que estava acontecendo
e depois riu da roupa que eu estava usando. Não foi um riso de deboche, mas eu
senti como se fosse. Depois compreendi o que se passou na cabeça dele. Ele
sabia o que eu iria passar.
De qualquer maneira, eu estava animado
para aquele momento. Muito já ouvira sobre a escola do branco e me passava pela
cabeça uma vontade grande de conhecê-la. E foi com esse espírito que aceitei
usar aquela farda feia e aqueles sapatos que apertavam meus pés que, antes,
eram livres inclusive do mau cheiro que depois eu senti.
Cheguei à escola bem motivado. Meus pés
apertados me faziam andar meio torto. Adentrei no prédio disposto a aprender as
coisas dos brancos. Logo de cara me deparei com um grupo de colegas. Todos eram
um pouco parecidos comigo e senti que poderiam ser meus amigos. Fiquei feliz.
No entanto, quando fui me aproximando do local, um deles apontou o dedo para
mim e gritou:
– Olha o índio que chegou na nossa
escola!!! Olha o índio!
Vou dizer uma coisa e posso até jurar:
eu fiquei olhando para todas as partes procurando o tal índio! Achei que era um
passarinho que eu não conhecia! Quando eles viram que eu não sabia do que
falavam, começaram a rir de mim. Eles acharam que eu era burro ou coisa
parecida. Só depois é que me dei conta de que eles falavam de mim.
Pode parecer estranho, mas aquela
palavra índio eu não conhecia. Eu não sabia que existia alguém que se chamava
índio. Meus pais nunca me chamaram assim; meus irmãos também não; meus outros
parentes idem. Era uma palavra que não cabia em meu pequeno vocabulário
português. Entendi, então, que meus colegas me deram um apelido. No começo eu
até achei que era legal ter um, mas depois fui percebendo que, por causa dele,
quase sempre eu era isolado nas brincadeiras, no pátio, na hora do lanche ou
nas atividades escolares. Percebi que meu apelido era motivo de piada e minha
origem era motivo de chacota. Isso me deixava muito triste.
O engraçado é que eles se pareciam
comigo: tinham cara igual a minha, cabelos lisos como os meus, maçãs do rosto
salientes e até pé chato alguns tinham. Por que eles zombavam de mim?
Sabem quem me esclareceu? Minha mãe.
Quando cheguei em casa e contei o que havia acontecido, ela me colocou entre
suas pernas, afagou meus cabelos e disse, sem rodeios:
– Eles se acham civilizados, meu filho.
Acham que por estarem mais tempo na cidade, já aprenderam tudo e podem fazer
mal para as outras pessoas. Não ligue para as bobagens que eles dirigem a você.
Mas também não se permita ficar como eles. Seja sempre um bom menino e não
deixe que um apelido destrua a bondade de seu coração.
Mamãe falou isso e me deixou brincar.
Não pensei duas vezes e corri para encontrar meus amigos verdadeiros, que
moravam na mesma aldeia que eu. Eu tinha perto de nove anos. Eu nunca gostei de
ser índio.
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