Tuesday 19 December 2017

Guia para solteiros

A louça acumulada na pia, as compras a serem realizadas e as contas a serem pagas contrariam os versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, que diz que “suave é viver só”. Viver só não é fácil e até hoje não encontrei uma escola onde pudesse aprender tudo o que é necessário para administrar um lar. Cada dia é um aprendizado novo que, somado aos já estabelecidos, garantem certa estabilidade. Até a próxima tempestade.

Variados são os motivos que levam uma pessoa a morar sozinha: escolha própria para encarar os desafios; mudança de cidade para um curso em uma faculdade ou um novo emprego; uma separação ou, na pior situação, a morte dos pais. Independente do motivo que faz com que uma pessoa escolha morar sozinho, o primeiro e mais importante passo para se estabelecer é se adequar às condições financeiras e, com o tempo, definir metas a serem alcançadas. Ou seja, é preciso amadurecer ou amadurecer para a vida real.

Há dez anos fiz a escolha de alugar um cômodo próximo ao local onde trabalhava e, com isso, economizar o dinheiro da passagem para adquirir móveis, roupas de cama, mesa e banho, utensílios domésticos básicos e outros itens essenciais. Apelidei o cômodo, que tinha um banheiro interno, de “caverna”, com todo respeito à proprietária do imóvel. Mas foi ali que tive minha primeira experiência com o isolamento e a responsabilidade, características que permeiam a pessoa que adota essa opção de vida. Hoje, um pouco mais confortável, relembro de todo esse caminho percorrido e rio sozinho no meio da rua. Alguns olham e acham que sou louco.

Às vezes, alguns alunos me procuram e dizem que desejam morar sozinhos. Prontamente eu respondo: “Prudência! Avalie todas as possibilidades antes de se aventurar por esse caminho”. Muitos desistem, é óbvio. Outros, no entanto, desafiam o perigo e colhem bons frutos dessa experiência. Semanas atrás li um post de um ex-aluno relatando a saga, com o qual dialogo em minha breve crônica.

“Você varre a casa num dia e no outro parece que 20 pessoas chegadas do deserto ficaram rolando no chão durante três horas...porque não há outra explicação pro aparecimento dessa quantidade de poeira”. Não mesmo. Mesmo ao mantermos as janelas fechadas, colocarmos um capacho na porta de entrada, passarmos pano todo final de semana, a poeira surge do nada. Fazer vista grossa é pior: na próxima consulta com seu médico, ele certamente irá alertá-lo de que sua rinite é oriunda do acúmulo de poeira, fungos e ácaros em móveis, no tapete, no lençol de cama.

“Você acaba de lavar a louça, toma uma aguinha e, do nada, Tchantchantantan...aparecem 30 copos, 27 pratos e 17 tupperware sujos na pia”. É batata. Por mais disciplinada que a pessoa seja, é inevitável o acúmulo de louça na pia. Se essa pessoa gosta de frituras, aí a coisa complica. Lavar e arear a panela, limpar o fogão e guardar toda a louça demandará um tempo generoso para os procrastinadores. Não vou nem mencionar quando isso ocorre na época do inverno.

“Você segue as receitas da internet pra fazer aquele pavê lindo do tutorial. Quando pronto, fica parecendo um bando de meia suja”. Não me arrisco. Prefiro ficar no básico pra não sofrer com os resultados. Às vezes me arrependo, pois “errando é que se aprende”, nos ensina o velho chavão. Mas a fadiga de comer um mesmo prato por três, quatro dias seguidos, me desencoraja a sonhar um dia em me candidatar ao Masterchef. Mas garanto: o feijão suculento, o arroz bem solto e as saladas que invento, divinas, garantem uma refeição leve e agradável de ser digerida.

“A comida ruim que você faz: ou você come ou morre”. Confesso que nos primeiros dias, a experiência com a cozinha não foi das melhores. O arroz “católico” grudava no fundo, o feijão ou ficava duro ou passava do ponto. Mistura? Ovo. Sem tempo para cozinhar, comi tanto ovo que, segundo as teorias científicas de algumas pessoas, deveria estar com o colesterol bem elevado. Não morri e não tive colesterol. Mas aprendi a preparar alguns cozidos que me salvaram da mesmice.

“Você descobre que os produtos de limpeza custam mais que um coração no mercado negro (R$ 30,00  UM POTINHO DE VANISH, ISSO NÃO EXISTE”. É tudo muito caro. De acordo com o Dieese, o preço médio da cesta básica em abril de 2017 no estado de São Paulo foi de R$ 446,00, sem o Vanish, é claro. Para se ter uma ideia, segundo o mesmo órgão, “em abril de 2017, o salário mínimo necessário para a manutenção de uma família de quatro pessoas deveria equivaler a R$ 3.899,66”. O gasto com a cesta básica equivale a 53% do orçamento, baseado no salário mínimo. Com as demais contas, o salário só passa pela conta bancária.

É preciso ser mágico, equilibrista, economista, caçador de promoção. Imprescindível: é preciso pensar bem antes de comprar algo para desperdiçar depois. Não raro ouço os ensinamentos da avó: “coloque no prato apenas o que vai comer. Não tem precisão agradar os olhos e desrespeitar o estômago”.

“As roupas sujas se multiplicam mais rápido que a família Catra”. Outra verdade indubitável. Por mais higiênica que seja uma pessoa, ao término de uma semana o balde com as roupas sujas está transbordando. Não tem como fugir. “Lava-me ou te devoro”, é o enigma a ser decifrado. Talvez seja meu maior defeito, algo ainda a ser aprendido: não sei lavar roupas. A última experiência não foi muito agradável e consegui tingir de azul duas camisas brancas. Desisti. O preço de roupas novas compensa, no meu caso, pagar para lavar fora.

“Você conversa com o William Bonner”. Não é fácil. Mesmo com a internet, whatsapp e todos os aparelhos tecnológicos, nada substitui a presença humana. Como lidar com a solidão? Talvez ler Nietzsche console um pouco: “Sobre a educação — Paulatinamente esclareceu-se, para mim, a mais comum deficiência de nosso tipo de formação e educação: ninguém aprende, ninguém aspira, ninguém ensina — a suportar a solidão”. “A solidão é fera. A solidão devora. É amiga das horas, é Prima-irmã do tempo e faz nossos relógios caminharem lentos, causando um descompasso no meu coração. A solidão dos astros. A solidão da lua. A solidão da noite. A solidão da rua”. Ah, Alceu Valença. Obrigado pela canção.

Com esse pensamento, Nietzsche quer revelar “como um dos ensinamentos do espírito livre é a solidão, primeiramente porque ele atingiu tal nível de distinção que poucos podem desfrutar de sua companhia, mas também porque, acima de tudo, aprendeu a amar sua própria companhia, em vez de temê-la. Quando está consigo, sente-se em casa, onde quer que esteja”. Quem nunca leu, deve ler Guimarães Rosa, quando afirma que “Viver é muito perigoso. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo... Travessia perigosa, mas é a da vida. Sertão que se alteia e abaixa... O mais difí¬cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”.

“As pessoas ficam ‘uhhh, nossa! Morar sozinho deve ser maravilhoso! Olha, não é não”. Em meio às tempestades e bonanças, cada um forma sua opinião ao longo do tempo. Digo, porém, que não é fácil. É uma batalha diária com você mesmo (lembrar de tirar o lixo, verificar se não deixou o registro do gás ligado, se as torneiras estão bem fechadas, se todos os alimentos foram guardados na geladeira, se as roupas sujas foram colocadas em seu devido lugar, se as contas estão devidamente pagas, se está faltando alguma coisa na despensa, se há papel higiênico suficiente, dentre outras coisas) e com a sociedade (você não vai se casar, precisa de uma mulher para ajudar nas coisas em casa). Não se casa com uma mulher para ter uma doméstica disponível, tampouco se casa com a mãe. Os anos morando sozinho me ensinaram a principal lição: o homem precisa se conscientizar de sua importância para a manutenção do lar e aprender a fazer de tudo um pouco: “lavar, passar, cozinhar, fazer compras não faz o saco cair”, dizia minha mãe.

Morar só é, acima de tudo, um exercício diário de nossa morada para a pessoa amada que um dia há de chegar e preencher os vazios dos cômodos com sua alegria, com seus ensinamentos e com sua forma de enxergar o mundo. Mas esse é um assunto para outra crônica, a ser escrita em breve.

Para quem deseja mais informações sobre morar sozinho, algumas dicas:
https://papodehomem.com.br/o-que-ninguem-conta-sobre-morar-sozinho/
http://financasfemininas.uol.com.br/vai-morar-sozinha-saiba-como-montar-um-orcamento/
http://mdemulher.abril.com.br/estilo-de-vida/32-coisas-que-voce-precisa-saber-antes-de-morar-sozinha/

0 comments:

Post a Comment

Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
;