Wednesday, 1 May 2024 0 comments

Primeiro de maio

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar.

Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucava com altivez que não carregava mala de ninguém, havia de celebrar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meio loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os músculos violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço quotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendo a barba.

Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota, em que ele desse uns socos formidáveis nas fuças dos polícias. Não teria raiva especial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitura dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender, combater, vencer… Comunismo? … Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanha mistura de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera, ah, um soco bem nas fuças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 comoveu num hausto forte, querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de sopetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminho do trabalho.

Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom-dia festivo aos companheiros trabalhadores. Chegou lá, gesticulou o bom-dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha, mas era muito polícia, polícia em qualquer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prático era um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso. Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais. De repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

Ao atravessar a estação achou de novo a companheirada trabalhando. Aquilo deu um mal-estar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!…” Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, impossível recusar, envilecido. Odiou os camaradas. Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou-se. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma idéia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não estava não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo. O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade, todos os seres juntos, todos bons… Depois vinham as notícias. Se esperavam “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, quase sem respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as fuças de algum… polícia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras, estavam em cima do jornal, nos arranha-céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitiria a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. Não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! é! E pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuaria, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação” pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gente não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensação aliás quase de esporte, questão de Palestra-Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz-que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pêlos menos… O 35 percebeu que se regava todo por “drento” dum espírito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Salvou-se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam (sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beira de tijolo do canteiro (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a gente achava graça no homenzinho “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal do deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agora estava torcendo pra não chegar com tempo na Estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da Estação, tirando fotografia Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomado aqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem-vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desagradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

Decidiu ir a-pé pra casa, foi a-pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma ideia ir lá, com que pretexto?… Devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus o convite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu-se muito triste, desamparado. E melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um vento enorme de todo o ser soprando ele pra junto dos companheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias. Estava inquieto mas modorrento, que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam, por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam,conversando baixo, com melancolia de conspiração. Polícias por todo lado.

O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiava na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro, um pouco de primeiro de maio, um pouco de "motim". O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

            Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderou o passo como quem passeia. Nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis escondidos na esquina, querendo a discrição de não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava idéia duma fortaleza enfeitada, entrar lá dentro, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descrevia coisas piores, massacres horrendos de "proletários" lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

Mas foi só quando aqueles três homens bem-vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: "Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!" com voz de mandando assim na gente… O 35 sentiu medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem-vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque, mais longe.

Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem-vestida nas escadas enxergando ele (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem-visível de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

— Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me'rmão! no parque ninguém não pára não!

Cabeças-chatas… E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do primeiro de maio, quase com ódio de viver.

O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutos pra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz-que olhando a multidão.

Acabara por completo a angústia. Não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem-sentida, nem bem-vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o primeiro de maio passava. A mulher de encarnado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada. Havia uma paz, que paz sem cor por dentro…

Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriado aos seus "proletários" também.

E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companheiros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instinto voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão), cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia-se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes. Surgiu um farrancho que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pêlos colos e o marido. Tudo falando: "Assim não serve não! As malas não vão não!" Aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas "não largavam não", só as malas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelas quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

— Deixe que te ajudo, chegou o 35.

E foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que 35 propunha rachar o galho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

Friday, 14 January 2022 0 comments

Uma história de fadas

 Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo quem não duvidava (e eram poucos) também não tinha a menor ideia de como fazer para chegar lá. Mas, entre esses poucos, corria a certeza que, se quisesse mesmo chegar lá, você dava um jeito e acabava chegando. Só uma coisa era fundamental (e dificílima): acreditar.

Era uma vez, também, nesse tempo (que nem tempo antigo, era, não; era tempo de agora, que nem o nosso), um homem que acreditava. Um homem comum, que lia jornais, via TV (e sentia medo, que nem a gente), era despedido, ficava duro (que nem a gente), tentava amar, não dava certo (que nem a gente). Em tudo, o homem era assim que nem a gente. Com aquela diferença enorme: era um homem que acreditava. Nada no bolso ou nas mãos, um dia ele resolveu sair em busca do País das Fadas. E saiu.

Aconteceram milhares de coisas que não tem espaço aqui pra contar. Coisas duras, tristes, perigosas, assustadoras, O homem seguia sempre em frente. Meio de saia-justa, porque tinham dito pra ele (uns amigos najas) que mesmo chegando ao País das Fadas elas podiam simplesmente não gostar dele. E continuar invisíveis (o que era o de menos), ou até fazer maldades horríveis com o pobre. Assustado, inseguro, sozinho, cada vez mais faminto e triste, o homem que acreditava continuava caminhando. Chorava às vezes, rezava sempre. Pensava em fadas o tempo todo. E sem ninguém saber, em segredo, cada vez mais: acreditava, acreditava.

Um dia, chegou à beira de um rio lamacento e furioso, de nenhuma beleza. Alguma coisa dentro dele disse que do outro lado daquele rio ficava o País das Fadas. Ele acreditou. Procurou inutilmente um barco, não havia: o único jeito era atravessar o rio a nado. Ele não era nenhum atleta (ao contrário), mas atravessou. Chegou à outra margem exausto, mas viu uma estradinha boba e sentiu que era por ali. Também acreditou. E foi caminhando pela estradinha boba, em direção àquilo em que acreditava.

Então parou. Tão cansado estava, sentou numa pedra. E era tão bonito lá que pensou em descansar um pouco, coitado. Sem querer, dormiu. Quando abriu os olhos — quem estava pousada na pedra ao lado dele? Uma fada, é claro. Uma fadinha mínima assim do tamanho de um dedo mindinho, com asinhas transparentes e tudo a que as fadinhas têm direito. Muito encabulado, ele quis explicar que não tinha trazido quase nada e foi tirando dos bolsos tudo que lhe restava: farelos de pão, restos de papel, moedinhas. Morto de vergonha, colocou aquela miséria ao lado da fadinha.

De repente, uma porção de outras fadinhas e fadinhos (eles também existem) despencaram de todos os lados sobre os pobres presentes do homem que acreditava. Espantado, ele percebeu que todos estavam gostando muito: riam sem parar, jogavam farelos uns nos outros, rolavam as moedinhas, na maior zona. Ao toquezinho deles, tudo virava ouro. Depois de brincarem um tempão, falaram pra ele que tinham adorado os presentes. E, em troca, iam ensinar um caminho de volta bem fácil. Que podia voltar quando quisesse por aquele caminho de volta (que era também de ida) fácil, seguro, rápido. Além do mais, podia trazer junto outra pessoa: teriam muito prazer em receber alguém de que o homem que acreditava gostasse.

Era comum, que nem a gente. A única diferença é que ele era um Homem Que Acreditava.

De repente, o homem estava num barco que deslizava sob colunas enormes, esculpidas em pedras. Lindas colunas cheias de formas sobre o rio manso como um tapete mágico onde ia o barquinho no qual ele estava. Algumas fadinhas esvoaçavam em volta, brincando. Era tudo tão gostoso que ele dormiu. E acordou no mesmo lugar (o seu quarto) de onde tinha saído um dia. Era de manhã bem cedo. O homem que acreditava abriu todas as janelas para o dia azul brilhante. Respirou fundo, sorriu. Ficou pensando em quem poderia convidar para ir com ele ao País das Fadas. Alguém de que gostasse muito e também acreditasse. Sorriu ainda mais quando, sem esforço, lembrou de uma porção de gente. Esse convite agora está sempre nos olhos dele: quem acredita sabe encontrar. Não garanto que foi feliz para sempre, mas o sorriso dele era lindo quando pensou todas essas coisas — ah, disso eu não tenho a menor dúvida. E você?

O Estado de S. Paulo, 30/11/1988
Wednesday, 31 March 2021 0 comments

Sombra — uma parábola

 

Sim! Embora eu caminhe pelo vale da Sombra.
Salmo de Davi

 

Vocês, que me leem, estão ainda entre os vivos, mas eu, que escrevo, desde há muito ingressei no reino das sombras. Pois, em verdade, coisas estranhas acontecerão, e coisas secretas serão reveladas, e muitos séculos decorrerão antes de os homens terem conhecimento destas memórias. E, quando o tiverem, mostrarão uns descrença, outros dúvida; poucos hão de achar sobre que refletir nas palavras aqui traçadas com pena de ferro.

Foi um ano de terror, e de sentimentos mais intensos que o terror. Sentimentos para os quais até hoje não se achou nome apropriado. Muitos prodígios e sinais haviam ocorrido; em toda parte, sobre mar e terra, a pestilência estendera suas asas negras. Para aqueles versados nos astros, não passara despercebido o aspecto mórbido dos céus. Para mim, Oinos, o grego, assim como para outros, era óbvio que ocorrera a alteração do ano 794 quando, à entrada de Áries, o planeta Júpiter põe-se em conjunção com o rubro anel do terrível Saturno. O espírito peculiar dos céus, se não me engano demais, evidenciava-se não só na órbita física da Terra, como também nas almas, nas imaginações, nas meditações da humanidade.

Ao redor de algumas garrafas de rubro vinho de Quios, entre as quatro paredes de um nobre vestíbulo numa cidade sombria chamada Ptolemais, estávamos sentados, um grupo de sete, à noite. Para nossa câmara não havia outra entrada além de alta porta de bronze, trabalhada pelo artífice Corinos. Fruto de hábil artesanato, fora aferrolhada por dentro. Cortinas negras ocultavam-nos a vista da lua, das estrelas lúridas, das ruas despovoadas, embora não excluíssem o pressentimento e a lembrança do flagelo. Havia coisas à nossa volta das quais não posso dar fiel testemunho — coisas materiais e espirituais — a atmosfera pesada — a sensação de sufocamento — ansiedade — e, sobretudo, aquela terrível condição de existência experimentada pelas pessoas nervosas, quando os sentidos estão vividamente aguçados e o poder de reflexão jaz adormecido. Um peso morto acabrunhava-nos. Oprimia nossos ombros, o mobiliário da sala, as taças de que bebíamos. Todas as coisas estavam opressas e prostradas; todas as coisas, exceto as sete lâmpadas de ferro a iluminar nossa orgia. Elevando-se em filetes de luz, queimavam pálidas e imóveis. No espelho que seu brilho formava sobre a mesa redonda de ébano, cada um de nós revia a palidez do próprio rosto, e um brilho inquieto nos olhos baixos dos demais. Mesmo assim, ríamos e nos alegrávamos de modo histérico; cantávamos as doidas canções de Anacreonte; bebíamos generosamente, embora o vinho nos recordasse o sangue. Pois, além de nós, havia outra pessoa na sala — o jovem Zoilo. Morto, deitado de comprido, ali jazia amortalhado — o gênio e o demônio da cena. Mas, ai, não participava de nossa alegria, salvo pela face, retorcida pela doença, e pelos olhos, nos quais a morte extinguira apenas a meio o fogo da pestilência, e que pareciam, face e olhos, ter por nossa diversão o mesmo interesse que têm os mortos pelas diversões dos prestes a morrer. Embora eu, Oinos, percebesse estarem os olhos do cadáver fixos em mim, ainda assim tentava ignorar-lhes a amargura e, contemplando firmemente as profundezas do espelho de ébano, cantava em voz alta e sonora as canções do filho de Teios. Aos poucos, porém, acabaram-se minhas canções, e os ecos, perdendo-se por entre os negros reposteiros da sala, enfraqueceram, tornaram-se indistintos, calaram-se de todo. Mas, ai, dos mesmos reposteiros por onde se perderam os ecos das canções, emergiu uma sombra escura e indefinível — a mesma sombra que a lua, quando baixa nos céus, desenharia de um homem sobre o chão. Aquela, porém, não era sombra de homem, nem de Deus, nem de coisa alguma conhecida. Tremulando um instante nos reposteiros do quarto, estendeu-se em seguida sobre a superfície da porta de bronze. Mas a sombra era vaga, e sem forma, e indefinida, não era sombra de homem nem de Deus — nem do Deus da Grécia, nem do Deus da Caldeia, nem de qualquer Deus egípcio. E a sombra jazia sobre o brônzeo portal, sob a cornija arqueada, e não se movia, nem dizia palavra: permanecia imóvel e muda. E a porta sobre a qual jazia a sombra, se bem me lembro, estava encostada aos pés do jovem Zoilo amortalhado. E nós, os sete ali reunidos, tendo visto a sombra sair de entre os reposteiros, não ousávamos encará-la; desviávamos os olhos, mirávamos fixamente as profundezas do espelho de ébano. Por fim, eu, Oinos, articulando algumas palavras surdas, indaguei da sombra qual era seu nome e morada. E a sombra respondeu:

— Eu sou a sombra. Minha morada fica perto das catacumbas de Ptolemais, junto daquelas sombrias planícies de Helusion que bordejam o canal sujo de Caronte.

E então nós, os sete, erguemo-nos de nossas cadeiras, horrorizados, trêmulos, enregelados, espavoridos. Porque o tom de voz da sombra não era o tom de voz de nenhum ser individual, mas de uma multidão de seres, e, variando de cadência, de sílaba para sílaba, ecoou confusamente aos nossos ouvidos, com os acentos familiares e inesquecíveis das vozes de milhares de amigos mortos.
 

“Shadow — A parable”, 1835

 

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O paciente improvável

 

Eles não podiam perder tempo. A fila de macas era longa e interminável, dando voltas pelos corredores. Fazia calor. Noite quente de outono.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio suava por debaixo da cebola. Cebola, era assim que ele chamava o traje que vestia todos os dias ao entrar no turno. Os colegas zombavam de seu excesso de proteção. Ele não ligava. Tirava dinheiro do próprio bolso para comprar EPIs numa pequena importadora de produtos chineses onde a namorada trabalhava. Vestia três proteções a cada turno.

⠀⠀⠀⠀⠀Já Orlando, colega de enfermaria, vestia o EPI padrão, fornecido pelo hospital, com a logomarca da prefeitura. Nesta noite de quarta-feira, ele estava virado, emendara o seu turno com o anterior, pois fora escalado para substituir Adriana, que havia sido internada com o teste positivo do vírus. Antes de vestir o EPI e iniciar a longa jornada de 24 horas, ele passou na capela do hospital para orar pela amiga.

⠀⠀⠀⠀⠀Estava com muita sede. Fazia horas que não bebia nem comia nada. Nem ia ao banheiro. Era trabalhoso fazer essas coisas vestido de vírus. Era assim que ele se achava usando aquela roupa de astronauta enquanto caminhava pela infindável fila de macas que se estendia a perder de vista pelos corredores e esquinas do 4º andar, reservado para tratar apenas de pacientes infectados com o coronavírus.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando podia avistar as nuvens de gotículas flutuando pelos corredores, se alvoroçando quando passavam macas apressadas, alçando voo como minúsculas mariposas reluzentes atraídas pelas luzes dos lustres. A morte pairava sobre todos naquele andar impiedoso, que até os elevadores temiam e gemiam ao parar.

⠀⠀⠀⠀⠀Ele fazia o sinal da cruz, respirava fundo e fechava os olhos por alguns instantes na esperança de fugir dali, mas as imagens daqueles corredores abarrotados de macas e doentes, de profissionais da saúde, muitos amigos queridos, agora irreconhecíveis em seus trajes de astronauta, aterrorizados ao enfrentar um inimigo tão sorrateiro e implacável, não lhe davam paz nem no escuro dos olhos fechados atrás da viseira e dos óculos de proteção.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio seguia com Orlando para atender a próxima maca quando sentiu o celular vibrar dentro do bolso direito da calça jeans sob os EPIs que vestia. O telefone estava inalcançável. Foi quando, sem pensar, olhou para o relógio na parede, que ainda marcava as 21h03 de algum dia quando resolveu parar logo no começo da pandemia.

⠀⠀⠀⠀⠀Novamente acontecera, como todas as noites. Lúcio estava infectado com o incurável TOC de que toda vez que olhava para a hora imóvel no relógio da parede, algum paciente pararia de viver no mesmo instante. Não importava se fossem 19h12 ou 3h38. Não. A hora real não valia. Valia o momento em que ele procurava o relógio na parede, num gesto imprevisto e incontrolável.

⠀⠀⠀⠀⠀Era um TOC sinistro que o revoltava. Ele tentava evitar, mas, num determinado momento do turno, desavisadamente, o seu olhar se desviava do trabalho e alcançava a hora misteriosamente imóvel naquele corredor. E a sentença estava dada, implacável.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando sempre percebia a aflição do colega nesse momento e imediatamente lhe assombrava a certeza inexplicável de que iria acontecer de novo.

⠀⠀⠀⠀⠀Nesta noite de quarta-feira, Lúcio virou-se para o colega de turno e se aproximou do paciente na maca da vez. Ele sabia que a escolha estava feita. Era irrecorrível.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando fez o sinal da cruz. Ajeitou a prancheta de madeira com as fichas de internação. Estava posicionando o prontuário do provável óbito, quando Lúcio recuou um passo ao ver a pessoa da maca. E disse, com a voz abafada pelas máscaras:

⠀⠀⠀⠀⠀– Ele...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando não entendeu:

⠀⠀⠀⠀⠀– Ele?

⠀⠀⠀⠀⠀Por instante, Lúcio quase se distraiu, quase levantou as viseiras e tirou os óculos ligeiramente embaçados para ver melhor o que estava diante de seus olhos.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando o viu se aproximar do rosto do paciente e o puxou para protegê-lo, pois o procedimento impedia chegar tão perto dos infectados.

⠀⠀⠀⠀⠀Afastou o colega para cobrir a cabeça do paciente, como sempre ocorria em caso de óbito. Mais uma vez a hora imóvel havia sido implacável.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando sempre fazia uma breve e sincera oração para o falecido antes de seguir para a próxima maca. Com maior tristeza e pesar para aqueles que a implacável hora imóvel do relógio ceifava sem piedade. Não queria entender como isso acontecia, nem ninguém no andar sabia que isso acontecia. Só ocorria no turno deles, só com eles. Eram tantas mortes naquela infindável fila, que mais uma, mesmo que por um capricho misterioso e cruel, não faria diferença alguma nos gráficos do governo e nas notícias dos jornais.

⠀⠀⠀⠀⠀Ele despertou da reza com um leve cutucão de Lúcio, que puxara o lençol do rosto do paciente.

⠀⠀⠀⠀⠀Ele se aproximou de Orlando. Como se quisesse contar um segredo ao colega, sussurrou perto do ouvido tapado pela toca de proteção:

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele... E ele ainda respira...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando soltou as mãos, fez o sinal da cruz e fitou o rosto do homem na maca. Por um instante desconfiou que pudesse ser alguém conhecido, mas balançou levemente a cabeça, dando de ombros.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio insistiu, apontando:

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele, ele... É ele, sim... Só pode ser ele...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando desdenhou com um sorriso que se desenhou na máscara. Olhou para Lúcio e depois para o homem na maca. Chegou mais perto. Recuou assustado, mas incrédulo:

⠀⠀⠀⠀⠀– Parece...

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele. Ele, sim. E está vivo. Com vida.

⠀⠀⠀⠀⠀– Você tá louco!

⠀⠀⠀⠀⠀– Tenho certeza.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando voltou a olhar o rosto do paciente, sem tocá-lo, a uma distância segura. Quis coçar o nariz como sempre faz quando fica intrigado, a viseira não permitiu.

⠀⠀⠀⠀⠀– Não pode ser... Ele, aqui, num hospital público colapsado, nesta fila insana e interminável de pacientes infectados em macas esperando por uma vaga impossível na UTI.

⠀⠀⠀⠀⠀– É ele, sim! – insistiu Lúcio.

⠀⠀⠀⠀⠀– A facada! – quase gritou Orlando, puxando o lençol que cobria a barriga do paciente.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio entendeu na hora. Tratou de ajudar o colega. Levantaram a camiseta verde com estampa de um time de futebol. Lá estava ela, a famosa cicatriz no abdômen. Apesar das luvas, Lúcio chegou a sentir as aderências sob o remendo.

⠀⠀⠀⠀⠀Entreolharam-se, perplexos, assustados.

⠀⠀⠀⠀⠀– Quem o trouxe pra cá? Como ele chegou aqui? É uma pegadinha? Só pode ser... – duvidou Orlando, olhando para os lados, para cima, embaixo da maca.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio pegou o prontuário pendurado na maca:

⠀⠀⠀⠀⠀– Nome: Não identificado. Documento: Nenhum. Idade: 74 anos (estimada). Endereço: Ignorado. Grupo de risco: Sim. Comorbidades: Nenhuma informação. Procedimentos primários: Passou pela triagem, desacordado. Sintomas: Covid-19 / tosse seca, febre alta e falta de ar. Observações: Provavelmente abandonado na porta do PS ou chegou sozinho e desmaiou na entrada do hospital. Classificação na fila: Pulseira preta, 127.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando puxou o braço esquerdo do paciente para fora e confirmou a cor da pulseira.

⠀⠀⠀⠀⠀– O que vamos fazer? – quis saber Lúcio, olhando para os lados e vendo o hospital mergulhado num atendimento incessante, frenético e estressante. – Veja! Ele é o número 127! Deveriam ter passado na frente!

⠀⠀⠀⠀⠀– Na frente? – estranhou Orlando.

⠀⠀⠀⠀⠀– Claro! Se ele é ele, sim, tem preferência... Vai morrer na fila se não for...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando interrompeu o amigo:

⠀⠀⠀⠀⠀– Lúcio, aqui, no 4º andar, todos morrem ou vão morrer na fila esperando uma vaga na UTI. Se ele é ele, como veio parar aqui? Ele não sabia o que tá acontecendo nos hospitais públicos? 

⠀⠀⠀⠀⠀– Mas ele recebeu pulseira preta na triagem. Não vai sobreviver – disse Lúcio enquanto olhou com assombro a hora imóvel na parede.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando tratou de descer a camiseta do paciente, tapando a cicatriz e depois o cobrindo com o lençol.

⠀⠀⠀⠀⠀– Temos que fazer alguma coisa – insistiu Lúcio, ameaçando puxar a maca da fila.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando o conteve:

⠀⠀⠀⠀⠀– Não dá pra fazer mais nada. Já vou reservar um lugar para ele no contêiner refrigerado.

⠀⠀⠀⠀⠀– Será enterrado numa cova rasa, como indigente – observou Lúcio, ainda segurando a maca, insistindo para tirá-la da fila.

⠀⠀⠀⠀⠀O colega apontou os corredores:

⠀⠀⠀⠀⠀– Vai furar a fila? Olhe! Não para de chegar macas com infectados graves... Estamos atrasando o nosso trabalho. Quem tem pulseira preta fica onde tá, esperando a vez...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando repassou cada informação no prontuário do paciente pendurado na maca. Estava inconformado:

⠀⠀⠀⠀⠀– Só pode ser uma pegadinha... Só pode... Ele aqui! Aqui! – seu olhar se perdeu entre os corredores infectados.

⠀⠀⠀⠀⠀Aí pegou a sua prancheta e demonstrou a intenção de seguir para o próximo paciente.

⠀⠀⠀⠀⠀– Vai deixá-lo aí? – quis saber Lúcio, inconformado.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando não respondeu. Avançou para a próxima maca. Viu o número e anotou na folha: 128. Era uma pulseira verde, rara. Ele chegou a sorrir, aliviado.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio o puxou. Apontou o paciente:

⠀⠀⠀⠀⠀– Orlando, é ele sim! É ele!

⠀⠀⠀⠀⠀– Não deve ser. É alguém parecido. Temos que continuar. Olha. Já tá começando fila dupla. Hoje é o décimo quarto dia depois daquela manifestação com todos juntos, próximos, sem máscara, berrando, espalhando gotículas... Lembra? Já sabíamos das incontáveis mortes anunciadas.

⠀⠀⠀⠀⠀– Mas ele... Ele não vai sobreviver...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando encarou o amigo e disse, quase soletrando as palavras:

⠀⠀⠀⠀⠀– Como todos nesta maldita e interminável fila filha da puta!

⠀⠀⠀⠀⠀– Mas é ele. É ele sim...

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando fez um gesto brusco com a mão, tapando parte da viseira de Lúcio:

⠀⠀⠀⠀⠀– Ele não é ele. Vou repetir, Lúcio... Ninguém o deixaria aqui numa fila de macas aguardando vaga na UTI de um hospital público colapsado. Ninguém! Trata-se de alguém parecido com ele. Uma trágica e absurda coincidência.

⠀⠀⠀⠀⠀Algo na TV ligada na primeira esquina do andar chamou a atenção de Lúcio. Caminhou até ela. Puxou o colega. Aumentou o som.

⠀⠀⠀⠀⠀A bordo de um helicóptero, um canal de notícias cobria uma manifestação. A jornalista relatava o que via:

⠀⠀⠀⠀⠀– No meio da pandemia, agravada com uma subida incontrolável e vertiginosa de infectados, internações, filas imensas e intermináveis por uma vaga na UTI ou mesmo por uma cova nos cemitérios, uma multidão se aglomerou na capital exigindo o fim do isolamento social e da quarentena. Já não é mais possível vê-lo entre os manifestantes que ousaram sair de casa nesta quarta-feira. Ele simplesmente desapareceu devorado pela multidão alucinada, entre selfies, abraços, apertos de mãos e bandeiras.

⠀⠀⠀⠀⠀Os dois voltaram correndo para a maca.

⠀⠀⠀⠀⠀Encontraram uma velhinha que sorriu para eles, feliz, como se tivesse despertado de um sonho.

⠀⠀⠀⠀⠀Lúcio olhou para o relógio. Ele voltara a pulsar. O ponteiro dos segundos se aproximava para completar uma volta.

⠀⠀⠀⠀⠀Orlando despertou do espanto com gritos atropelando-o, pedindo passagem. Eram enfermeiros e enfermeiras eufóricos e barulhentos voltando da UTI, empurrando macas com pacientes curados, sorridentes e felizes.

⠀⠀⠀⠀⠀Pacientes desciam das macas e seguiam sem dor e aliviados para os braços de parentes e amigos que invadiam o andar.

⠀⠀⠀⠀⠀A velhinha da maca 127 se aproximou de Lúcio e o beijou na viseira.

 



Alonso Alvarez nasceu e mora em São Paulo e é escritor, artista gráfico e editor. No Grupo Companhia das Letras, participou da antologia Haicais tropicais (2018).

 

Primeiro de maio

No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava bem disposto, até alegre, ele bem afirmara...

 
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