Não, não pretendo falar do filme de Bergman. Também emudeci ao sentir o
dilaceramento de culpa de uma mulher que odeia seu filho, e por quem este sente
um grande amor. A mudez que a mulher escolheu para viver a sua culpa: não quis
falar, o que aliviaria o seu sofrimento, mas calar-se para sempre como castigo.
Nem quero falar da enfermeira que, se a princípio tinha a vida assegurada pelo
futuro marido e filhos, absorve no entanto a personalidade da que escolhera o
silêncio, transforma-se numa mulher que não quer nada e quer tudo – e o nada o
que é? e o tudo o que é? Sei, oh sei que a humanidade se extravasou desde que
apareceu o primeiro homem. Sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não
mente, enquanto as palavras dizem o que não quero dizer. Também não vou chamar
Bergman de genial. Nós, sim, é que não somos geniais. Nós que não soubemos
nos apossar da única coisa completa que nos é dada ao nascimento: o gênio da
vida.
Vou falar da palavra pessoa, que persona lembra.
Acho que aprendi o que vou contar com meu pai. Quando elogiavam demais alguém,
ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o
máximo que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração
orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter
desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e
morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.
Persona. Tenho pouca memória, por isso já não
sei se era no antigo teatro grego que os atores, antes de entrar em cena,
pregavam ao rosto uma máscara que representava pela expressão o que o papel de
cada um deles iria exprimir.
Bem sei que uma das qualidades de um ator está nas mutações sensíveis de
seu rosto, e que a máscara as esconde. Por que então me agrada tanto a ideia de
atores entrarem no palco sem rosto próprio? Quem sabe, eu acho que a máscara é
um dar-se tão importante quanto o dar-se pela
dor do rosto. Inclusive os adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que
vão vivendo fabricam a própria máscara. E com muita dor. Porque saber que de
então em diante se vai passar a representar um papel é uma surpresa amedrontadora.
É a liberdade horrível de não ser. E a hora da escolha.
Mesmo sem ser atriz nem ter pertencido ao teatro grego – uso uma
máscara. Aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não se
ficar desnudo para o resto da luta. Não, não é que se faça mal em deixar o
próprio rosto exposto à sensibilidade. Mas é que esse rosto que estava nu
poderia, ao ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e
terrível. É, pois, menos perigoso escolher sozinho ser uma pessoa.
Escolher a própria máscara é o primeiro gesto voluntário humano. E solitário.
Mas quando enfim se afivela a máscara daquilo que se escolheu para
representar-se e representar o mundo, o corpo ganha uma nova firmeza, a cabeça
ergue-se altiva como a de quem superou um obstáculo. A pessoa é.
Se bem que pode acontecer uma coisa que me humilha contar.
É que depois de anos de verdadeiro sucesso com a máscara, de repente –
ah, menos que de repente, por causa de um olhar passageiro ou uma palavra
ouvida – de repente a máscara de guerra de vida cresta-se toda no rosto como
lama seca, e os pedaços irregulares caem como um ruído oco no chão. Eis o rosto
agora nu, maduro, sensível quando já não era mais para ser. E ele chora em
silêncio para não morrer. Pois nessa certeza sou implacável: este ser morrerá.
A menos que renasça até que dele se possa dizer “esta é uma pessoa”. Como
pessoa teve que passar pelo caminho de Cristo.
1 comments:
Clarice é sempre uma boa prosa, é sempre um pensamento palavreado, abs.
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