Saturday 12 September 2015

A maior de todas as lições

 

"Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma - na princesa e na mendiga. E para ambas é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca - preparatório, e o momento dos filhos - definitivo. Depois disso, está extinta a mulher." Monteiro Lobato

Os olhos de Dona Juju marejavam. Lembranças saltavam-lhe na memória, resgatando uma célebre tarde que nunca lhe saiu do pensamento, por mais que os anos insistissem em tentar apagar de forma definitiva. O ano seguinte, os anos seguintes, todos os dias foram destinados a aceitar que uma atitude firme de sua mãe contribuiu para uma mudança radical em sua vida.

À época dos fatos, contava Dona Juju com apenas oito anos. Vivia com a mãe, o pai e uma tia em um imóvel assobradado na Rua das Acácias, atual Rua das Virtudes. Como toda menina, mantinha uma coleção praticamente impecável de bonecas que fazia inveja a colegas da mesma idade. Algumas lhe foram dadas como presente de aniversários; outras, o pai comprou após Dona Juju, diante das recorrentes negativas, decretar greves de fome.

Cuidava com paciência das bonecas, recorrendo constantemente aos livros de costura que ganhara da avó para confeccionar novos vestidos para suas “meninas”. Levava-as à médica, uma prima sua que morava em uma casa vizinha. Quem assistisse à cena jurava estar diante de uma verdadeira mãe de família, sempre preocupadíssima com a saúde, educação e crescimento de suas filhas.

O mês de novembro chegou e, com ele, a feira de Icaraí levou à Niterói tudo o que havia de novo comercializado mundo afora. Brinquedos, utensílios domésticos, alimentos. De tudo um pouco era possível ser encontrado naquela que era a maior feira da região. Os pais de Dona Juju não iam à feira. “Não gostavam de tumulto”, segredou-me em sussurros.

As novidades só chegavam à casa de Dona Juju por meio da Maricota, senhora já na casa dos quarenta, dona de uma paciência de Jó. Todos os meses, saía pelas casas da vizinhança vendendo os produtos comprados na feira de Icaraí, sem os abusos de preços que hoje muitas pessoas costumam praticar. Com isso, a margem de lucro era razoável, além de garantir à dona Maricota a fofoca da semana e a degustação de suculentas tortas ou deliciosos bolos feitos pela mãe de Dona Juju ou por outras vizinhas. Em alguns momentos, ficava além mais tempo que o necessário, à espera de um mimo da anfitriã.

Sábado de chuva. Com sua já conhecida sacola, dona Maricota chegara por volta das 14h à casa de dona Juju. Retirou um a um os produtos que tinha a oferecer: bule, xícara, pano de prato, pequenos utensílios e utilidades domésticas. Tirou também alguns brinquedos, inclusive seis bonecas. Cinco eram semelhantes a que D. Juju havia adquirido semanas antes. Mas uma delas era diferente e seus olhos imediatamente brilhavam com a possibilidade de acrescentá-la à sua vasta coleção. Não era igual as que ela possuía: era uma boneca negra, com um longo vestido rendado, uma flor de plástico pequena presa entre os cabelos, olhos encantadores.

- Mas você já tem vinte e três bonecas, Juju. Vinte e três bonecas..., - esbravejou a mãe.

“A mãe tinha razão”, pensou a menina. Não precisava de mais boneca alguma. As vinte e três que possuía garantiam-lhe horas e horas de dedicação e responsabilidade. Prepará-las para o colégio, organizar o material escolar, remendar seus vestidos, dar-lhes a comida na hora certa, levá-las à médica. Mas aquela boneca era diferente, não era? Por que não trazê-la para junto de si e cuidar dela como fazia com as outras?

- E não adianta me ameaçar com greve de fome, está ouvindo? Não tenho o coração mole como seu pai, - disparou a mãe logo em seguida.

O semblante de satisfação de Dona Juju logo se desfez. O desejo de possuir a boneca, não.

Lembrou-se de que a mesa da casa onde morava tinha uma gaveta de tamanho razoável. Não hesitou duas vezes: aproveitando um momento de distração de Dona Maricota, apropriou-se indevidamente da boneca e a lançou dentro do referido compartimento. Não viu, no entanto, que sua tia havia acabado de chegar e presenciara toda a cena. Assustada, fez menção de restituir o brinquedo ao seu devido lugar, mas a tia fez um gesto que a deixou confusa, porém mais tranquila. Com as duas mãos, a tia as posicionou em frente aos olhos, como se lhe dissesse que não havia visto nada.

Enquanto isso, Dona Maricota ria efusivamente ao saber as novidades e ao provar à torta da mãe de D. Juju. Findo seu prazo ali, preparou-se para deixar o local e reorganizou as coisas dentro de sua mochila. Desatenção ou esquecimento mesmo fizeram com que ela não notasse a ausência da boneca negra. Colocou a sacola no ombro, agradeceu à receptividade e partiu.

Dez minutos depois, Dona Juju poderia enfim desfrutar dos primeiros momentos com a boneca que escondera na gaveta. Tirou-a cuidadosamente e começou a alisar os cabelos, a ajeitar com delicadeza o vestido, a procurar em sua lista de nomes um com o qual pudesse batizá-la. Escolheu Isabel.

Sua felicidade, porém, durou pouco tempo. Repentinamente, sua mãe entrou na sala e a encontrou com a boneca nos braços.

- Que boneca é essa?

Dona Juju emudeceu. Não sabia como explicar. A tia, na cozinha, ouviu o sermão que ecoou alto pela casa.

- Quero que você me explique quem lhe deu essa boneca, tim-tim por tim-tim...

- Enquanto a Dona Maricota estava lá dentro, eu aproveitei e escondi a boneca dentro da gaveta...

Os olhos da mãe de Dona Juju trovejaram, relampejaram. Uma tempestade estaria por vir. Mas, como era de praxe da mãe, não houve surra ou qualquer castigo corporal. O castigo foi, segundo palavras da própria narradora, o aprendizado para a vida.

A mãe pediu que a filha colocasse a boneca em uma sacola: iriam imediatamente à casa da vendedora para devolvê-la. Dona Juju tentou, como se estivesse em uma última instância, um apelo para que a mãe comprasse aquela boneca.

Ao chegarem à casa da vendedora, a mãe bateu palmas e aguardou, impaciente:

- Você vai pedir desculpas pelo ato cometido! E quando chegar em casa, conversaremos..., - falou à meia voz.

- Boa tarde, Dona Maria. Boa tarde, Juju...está tudo bem? Eu ia voltar agora mesmo a casa de vocês...senti a falta de uma boneca...

- Estamos aqui para falar exatamente sobre isso, - disse a mãe de Dona Juju. – Trate de explicar o que aconteceu agora mesmo...

Dona Juju não sabia por onde começar. Mas a voz afinal vencera a crueldade e falou:

- Dona Maricota, a senhora me perdoa...eu fiz uma coisa muito feia! Mas é que eu queria tanto essa boneca pra completar minha coleção...

- Ah, isso são coisas de criança, Dona Maria. Não se preocupe...

- Me preocupo, me preocupo sim, Dona Maricota. É de pequeno que se aprende a lição de integridade, de caráter, de dignidade... As crianças também precisam aprender a ouvir não. Do contrário, crescem sem responsabilidade...

As palavras da mãe foram certeiras, que ameaçava chorar mediante a bronca e possível surra que levaria quando retornasse pra casa com a mãe.

- A senhora não quer comprar a boneca pra ela, Dona Maria? Eu parcelo em duas vezes...

- Comprar? Não...ela já tem vinte e quatro bonecas, Dona Maricota...ela precisa é controlar os impulsos..., - observou Dona Maria. – Peraí...pensando bem, vou comprar. E vou pagar a vista...

O rosto que antes estava nublado logo se desanuviou. Uma nesga de sorriso agora começava a brilhar em seu rosto. Em pouco tempo teria a boneca dos seus sonhos.

A mãe entregou o dinheiro. Mas pediu que Dona Maricota lhe trouxesse uma tesoura. Dona Juju ficou meio sem entender o que poderia acontecer, mas fez questão de sorrir mais expansivamente ainda. Logo teria seu sonho de menina realizado.

Quando Dona Maricota voltou com a tesoura em mãos, a surpresa. Dona Maria, em golpes rápidos e objetivos, rasgou toda a boneca. Cortou os cabelos, tirou o olhos, as orelhas, o pescoço...Cortou-lhe o vestido rendado, as perninhas e os bracinhos, um a um, pacientemente, sem a crueldade que o momento exigiria...mas de forma muito esclarecedora.

- Tome. É sua. Você vai levar a boneca e vai deixar junto às outras. E vai aprender de uma vez por todas que nem sempre querer é poder...

Quando chegaram em casa, não houve surra. Dona Juju foi direto para seu quarto e lá ficou, o olhar parado na janela, a noite invadindo seu pensamento. Perplexa, recordava da cena na casa de Dona Maricota. Olhava para a boneca, completamente fragmentada, aos pedaços. Pensou em reconstruí-la, mas viu que seria impossível.

Levantou-se da cama e prostrou-se iante do espelho. Viu-se diferente. Sentiu agigantar na alma um sentimento de culpa e de arrependimento. As lágrimas começaram a brotar, inundando sua face. Pensou em tudo o que fizera de errado e silenciou. Mal sabia ela que um beija-flor iniciara voo em seu estômago naquele exato momento.

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