Para Cecília Nisemblat
Eles
tinham seis anos de idade e iam fugir juntos. Lento, o menino enfiou o pião no
bolso, sua única posse, e encaminhou-se para a porta. De dentro chegou a voz da
mãe num prenúncio de reclamação está quase na hora do jantar, onde é que você
vai? Não respondeu. Em silêncio, começou a concretizar o que há dois dias se
desenrolava dentro dele. A segurança da coisa construída em imaginação durante
horas de quietude emprestava a seus passos uma precisão até então inédita,
permitindo-lhe a audácia de não responder, ignorando eventuais palmadas. O
trinco quase machucou a mão no ato de fechar a porta, mas ele já começava a
criar das coisas que formavam "o que ficava". E o que ficava era
tanto que praticamente não tinha nada\além de: um pião no bolso e uma ideia na
cabeça.
O
morrer do sol colocava uma cor também de fuga nas casas, nas coisas, nas
pessoas que cruzavam numa melancolia de anoitecer. Em breve as sombras se
afirmariam em escuro e ele não estaria mais ali. A ideia poderia quebrá-lo por
dentro, porque era duro de repente não estar mais num lugar. Mas ele nem se
machucava, há tanto já adivinhara os movimentos interiores prevenindo os
receios, precavendo-se contra a série de sentimentaloidices que se amontoariam
bruscas sobre seu coração de seis anos de vida. Por tanto, estava preparado.
Dentro do tempo que vive era, dois dias era uma longa preparação de esqueci
mento que se impusera com método, recusando ternuras, comida na boca, cafuné
antes de dormir.
Estava
todo delineado. E fugia.
Caminhava
devagar, a coisa remexendo-se com gosto dentro dele. Num esquecimento de que
era insípida, quase estalava a língua de puro prazer. Mãos nos bolsos, cabeça
baixa, ah nunca se sentira tão definitivo. Era seu primeiro crime, e tão
longamente premeditado que não havia espanto nem temor. Como um profissional da
fuga, ia indo pela calçada comprida, rente ao muro. O sol espichava sua sombra
para trás, vez em quando ele se voltava para ver se ela ainda o acompanhava.
Ainda. Expressava seu alívio em forma de suspiro, e prosseguia. Permitia-se
apenas esse medo, o de estar sozinho. Mas aquela sombra imensa e achatada
contra o cimento não deixava de ser uma segurança, embora disforme.
Pegou uma pedrinha branca e começou a riscar o calçamento. Depois enfiou-a no
bolso, numa sabedoria de coisa decidida: poderiam segui-lo através do risco
fino, irregular. Ainda mais seguro, olhou quase vesgo de satisfação para uma
senhora com a bolsa grávida de compras. A mulher encarou-o com desconfiança.
Ele parou, o medo se transformando em desafio nos olhos que meio furavam a
natureza da mulher. Suspensos no meio da tarde, mediam-se expectantes. Pensou
em correr, depois riu um risinho cínico que aprendera na televisão -ela não
sabia de seu crime. Então esperou. Até que a mulher abriu a bolsa e estendeu-lhe
dois biscoitos. Balbuciou um agradecimento de espanto com tanta inocência
humana e enfiou-os no bolso, junto com a pedrinha branca. A silhueta da mulher
morria na esquina quando ele se interrogou, numa primeira incompreensão. Saíra
de casa apenas com o pião, agora já tinha dois biscoitos, uma sombra, uma
pedrinha branca e um acontecimento. Fugir não era então ir se despojando de
coisas? Não entendeu, mas o poste que marcava longe o lugar do encontro
suspendeu a dúvida. Preocupado, encaminhou-se para lá.
Não
via a menina. Correu para o poste, investigou as pessoas que passavam mas
nenhuma tinha jeito-de-menina-que-ia-fugir. Coçou a cabeça. Num desânimo,
esperar. Acomodou a irritação no meio-fio, tirou as posses do bolso. Começava
por um biscoito, depois brincava com o pião, depois o outro biscoito, depois
desenhava no chão com a pedrinha branca, depois pensava na coisa acontecida.
Detestava a improvisação, por isso ficou um pouco abalado com a ausência da
menina e teve que planejar ações em que não havia pensado. Começava a
desconfiar seriamente da honestidade do sexo oposto. Acumulou uma série de
queixas que abalaram o prestígio da menina, e preparava-se para pensá-las
quando o biscoito sobre a calça fez um jeito fascinante, assim meio pedindo
para ser comido. Havia-se recusado tantas coisas nos últimos dois dias que
guardava mesmo um pouco de fome formando um espaço branco no estômago. Rompendo
com o planejamento, devorou voraz os dois biscoitos, depois misturou pedaços de
unhas aos farelos restantes. Quase saciado, girou o pião de leve no cimento. Um
menino que passava olhou fixo, invejando. Lembrou da impontualidade da menina e
perguntou objetivo:
-Quer
fugir comigo?
Inexperiente
dessas coisas, o outro arregalou os olhos:
-Quê?
-Quer
fugir comigo?
-Pra
onde?
-Não
sei ainda. Qualquer lugar.
-Pode
ser Vênus?
-Pode.
-E
Gotham City?
-Pode.
-E.
..e. ..(a geografia falhava).
-Quer
ou não quer?
-Não
sei, o que é que você me dá se eu fugir com você?
O
menino investigou as posses desfalcadas. Percebeu o brilho de cobiça nos olhos
do outro:
-O
pião. Quer?
O
outro fez cara de dúvida:
-Sei
não. Isso presta?
-Quer
ou não quer? ("É pegar ou largar", dizia o gangster na televisão).
-Quero.
Estendeu
a mão. O menino fez um movimento esquivo de dissimulação.
-Agora
não. Só depois que a gente chegar lá.
-Lá
onde?
-No
lugar, ora.
-Que
lugar?
-O
lugar para onde a gente vai fugir .
-Mas
você não disse que não sabe onde é?
-Disse.
-Então
pode levar anos.
-E
daí?
-Daí
que eu quero o pião agora.
Desacostumado
a argumentar, estendeu o pião. Antes que pudesse fazer qualquer gesto, o outro
já vai longe, risada dobrando a esquina, o pião roubado, a promessa não
cumprida. Todo magoado com a desonestidade alheia voltou a pensar na menina.
Encaminhou-se para a casa dela. Bateu devagar na porta. A mãe da menina espiou
pela janela.
-A
Lucinha está?
-Não.
Foi no aniversário da menina aqui ao lado.
Meio
que tropeçou no inesperado da coisa. Devia ter ficado pálido, porque a
mãe-da-menina-que-ia-fugir dobrou-se para ele, perguntando se estava sentindo
alguma coisa. Estava. Mas como desconhecia aquela onda verde bem claro que se
quebrava incompleta dentro dele, não teve palavras para explicar.
Disse
não, não tenho nada, e foi saindo de cabeça baixa. Já não só duvidava da
menina, mas principalmente de si próprio. Parecia-lhe um pouco culpa sua aquele
amontoado de desencontros. De dez minutos para cá aconteciam coisas tão
incompreensíveis que estava quase desistindo. Por uma questão de dignidade,
bateu na porta da casa de menina-que-estava-de-aniversário, que apareceu de
vestido cor-de-rosa perguntando se ele tinha trazido presente. Ele desentendeu
um pouco mais, ainda assim fez voz firme e pediu para falar com a
menina-que-ia-fugir. Com o maior cinismo do mundo, ela brotou de repente duma
nuvem de babadinhos, a cara limpa, o cabelo penteado com uma fita -ela, a
falsa, que vivia com os fios na boca. Mais grave: um copo de guaraná e uma
cocada nas mãos. Nunca a vira tão Lucinha em toda a sua vida.
Teve vontade de dar um tiro nela. Mas estava tão desarmado que só conseguiu
perguntar com voz meio irregular:
-Você
não ia fugir comigo?
-Ia
- disse a menina mordendo a cocada. E ai! O espaço branco da fome cintilou
dentro dele.
-Esperei
você até agora. Por que que você não foi?
-Por
causa do aniversário, ué.
-E
o que que tem isso?
-Tem
que fugir a gente pode todos os dias, mas aniversário é só de vez em quando.
Tinha
selecionado uma porção de adjetivo pejorativos para jogar em cima dela, mas o
pretexto era de uma lógica tão irrecusável que ele ficou parado uma porção de
tempo, sentindo o tudo que preparara lento em dois longos dias de meditação
ir-se desfazendo como a cocada na boca da menina.
Ela olhava para ele, ele pensava na frase, pensava, pensava, ai, o espaço
branco aumentando por dentro, uma baita raiva da menina, da mulher que dera os
biscoitos, do moleque que fugira com o pião, vontade de bater neles todos ou,
na impossibilidade, sapatear até ficar roxo e a mãe chamar o médico num susto.
Mas os barulhos da festa cresciam lá dentro, o sol morrendo dourava ainda mais
o guaraná, o espaço em branco aumentava até o não-suportar-mais. Indeciso
ainda, virou o pé leve no chão. Até que deixou de lado o pudor e perguntou:
-Será
que ela deixa eu entrar sem presente?
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