Wednesday 24 March 2021

Trama secundária de uma novela realista

   

        A jovem doutora aceitou um posto no interior do interior. Era um povoado dividido por um rio, que ficava perto da fronteira, mas não o suficiente para ser importante, daqueles onde só tinham restado velhos. Casais de meia-idade para cima, homens e mulheres encanecidos já desde os quarenta e poucos, em casebres pobres porém limpinhos. Os filhos ou não existiam ou trabalhavam na cidade grande ou na roça, bem longe dali.

 ⠀⠀⠀⠀⠀A jovem doutora começou com uma palestra sobre a saúde da família. Como prevenir doenças, afastar ratos e mosquitos, a alimentação mais nutritiva possível naquelas condições, essas coisas. Também quais tratamentos e atendimentos estariam disponíveis ali. Alguns agradeceram a ela por ter vindo cuidar deles; os demais assentiram, pegaram umas aspirinas, e foram embora para casa.

 ⠀⠀⠀⠀⠀O problema começou quando chegou o primeiro lote da droga anti-impotência para homens subsidiado pelo Estado. Os velhinhos ficaram malucos! Começaram a fugir de casa (e de suas esposas) toda noite para visitar o prostíbulo do outro lado do rio, sua potência sexual recuperada. A doutora só ouviu falar disso em retrospecto, meses depois; então ela percebeu que não era caso isolado; pelo menos demorou pouco até conectar isso com a frieza de algumas pacientes mais velhas com ela e novos casos de HIV na região.

 ⠀⠀⠀⠀⠀Ela se viu na terrível situação de ter que dar aula de educação sexual para idosos – a ideia de mostrar como usar camisinha numa banana sempre a horripilou. Ou então ela podia tentar agir como um padre, disciplinando os apetites carnais. Mas uma esposa deu a ideia salvadora: por que você não deixa o remédio com a gente? A doutora topou. A virilidade recuperada agora teria sacerdotisas responsáveis.

 ⠀⠀⠀⠀⠀ Um dia, o posto de saúde amanheceu arrombado. Nada além de remédios, muitos remédios, havia sido levado. Estavam atrás da pílula azul. Mas não a encontraram, porque a doutora sempre as levava consigo para casa, numa maleta, por precaução. A polícia foi chamada; nada foi apurado. Mas agora havia pessoas sem treinamento médico cheias de antibióticos e medicamentos tarja preta na mão. A doutora fez correr a notícia de que estava disposta a marcar uma troca. Todos os remédios roubados por todo o lote de pílulas azuis que possuía. Não demorou até um bilhete aparecer embaixo da porta marcando hora e local.

 ⠀⠀⠀⠀⠀– Ouve – disse ela naquela noite ao chefe do grupo de três homens que veio vê-la. – Vou dizer onde está. Está tudo separado num lugar que só eu sei. Mas me promete. Vocês têm que pôr camisinha se forem usar por aí. E vir sempre pros exames de coração. Cardíaco não pode tomar isso. Promete que vai dizer pra todo mundo.

 ⠀⠀⠀⠀⠀Eles prometeram. Ela contou onde estava, pegou em troca os sacos plásticos com os remédios roubados. Estava quase tudo ali.

 ⠀⠀⠀⠀⠀Pouco tempo depois, um dos três homens presentes na troca foi velado em casa depois de um fulminante ataque cardíaco. A médica compareceu ao velório. Encarou um por um dos cúmplices ainda de pé. Saiu antes de o álcool levar a melhor sobre o bom senso. Pode-se dizer que ela não desistiu, não completamente; pediu transferência para outra cidade, maior que aquela, mas ainda pequena.

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