Friday 1 February 2013

A dançarina

m-ballet (1)
Para P.B.
Não dançava, era a própria dança. Pelo menos foi isso que ouvi certa vez: “ela é uma coisa toda assim... dançante”. E era verdade porque quem a via mover-se diria que algo a embalava: os pés pareciam deslizar sobre o assoalho, as mãos sempre a reger uma orquestra invisível e os quadris desenhavam curvas no espaço. Os mais íntimos, os que a olhavam nos olhos, viam algo como uma vertigem acompanhando a música muda que constantemente mastigava. Mas ninguém a via depois do trabalho. Sabiam que fazia aulas de dança todos os dias, que dançava aos finais de semana em disputadas apresentações e que quem visitava sua cama enlouquecia com seus movimentos. Como eu, que fui estendendo a noite em noites e pude acompanhar uma rotina cheia de graça e leveza.
Quando entrei em sua vida, ela já havia arrancado aquelas paredes e feito do apartamento um palco gigante iluminado por enormes janelas. Não raro esquecia-se de minha presença e cumpria um ritual sagrado: afastava todos os móveis, espremendo-os junto às paredes que restavam e, nua, sob a luz da lua apenas dançava por horas e horas e horas... Dizia que era preciso “espaço para o amor”... No começo aquilo me deliciava, mas depois, sem maturidade e com ciúmes desse amor maior que o meu, afastei-me, deixando-a só com sua dança.
Mais tarde, soube dos pés doentes. Inchados e doloridos. Contaram-me sobre as muletas. Confesso o desprezível contentamento que senti. Não podia compreender uma mulher que se bastasse, uma mulher cujo objeto de amor era algo que vinha de si mesma. Amava-a e odiava-a, por isso. Doía-me sua dor, mas doía-me mais ainda a minha por não ter aquela sua dança pra mim. Cheguei a pensar que, agora que não era capaz, eu poderia dançar pra ela. Conhecia os passos, meu corpo era tão leve e simétrico como o seu. Também conhecia os movimentos, que me ensinara rindo da minha dedicação carente de elogios. Então, eu dançaria para ela. Dançaria por ela. Como ela nunca fizera por mim ou para mim. Porque dançava-se, como foz e fonte do seu prazer.
Não lhe contei meus planos de fazê-la feliz, nem a visitei quando parou de aparecer no trabalho. Nossas amigas diziam que nos olhos ainda a vertigem, mas os pés cada vez mais debilitados, extremamente inchados, prestes a explodir. Recebia sentada, numa dança de mãos e braços e tronco apenas. Dizem que até os cabelos balançavam com o vento que vinha da janela. Mas eu, idiota, nunca que.
E, por nunca mais, é que fiquei sabendo do ocorrido apenas no dia seguinte, no trabalho. Naquela noite, a dor aumentara e, junto com ela, uma coceira muito forte que tentou amenizar com pomada e analgésicos. Depois um filete de sangue e a carne perfurada. Toda a noite para que aquelas quatro asas pequenas, do tamanho de um palmo, rasgassem as laterais dos tornozelos. Eram brancas e de uma penugem reluzente, pelo menos foi o que ouvi. Disseram que nenhuma dor depois de completado o processo e que os pés, delicados e desinchados, agora levitavam numa dança ainda mais harmoniosa. Eu nunca mais a vi porque, nesta noite, totalmente realizada, subiu no parapeito da janela e, mais linda do que nunca, se entregou àquela dança alada. Nua, toda vertigem, só a lua iluminava a dançarina.
Nunca compreendi esse amor maior do que o meu. Nunca compreendi a dançarina. Também não encontrei outra mulher assim, nem neste espaço onde danço todos os dias, mesmo sem saber dançar.
[Geruza Zelnys, Revista Terraço, Março/2012]





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