Friday 1 February 2013

Redes e Enredos

 
“Isso já faz mais de quinze anos” arrematou Seu Joca enquanto dava um nó firme na linha de nylon amarrando o passado ao presente e tornando mais colorida a tarde que caía. (O relógio marca meio-dia).
Explico-lhe porque estou ali: preciso de uma boa história para escrever um conto, eu que ganho a vida com a vida dos outros passada a limpo. Seu Joca acha que sua história não vale a pena, que não é coisa de tantas linhas: apenas os dois pontinhos picados da maldita e tatuados no não sei onde porque ele não é homem de levantar a calça assim para uma dona moça como eu. E o resto é tudo palavreiro.
Mas, não preciso insistir porque a história da cobra que o mordera há mais de vinte anos esgueira-se por entre os fios da rede de pesca entrelaçados pelos dedos ágeis do antigo pescador. Entre um ponto e outro, a história é acrescida de suspiros-memórias que Dona Lurdinha, a esposa ensolarada, não pode conter.
Vítima da peçonhenta, como todo bom filho de Adão, Seu Joca deixou a vara no barranco e nunca mais foi buscar os curimbatás que o rio guardava para ele. Desde então, passou a fazer redes e, hoje, quem passa frente à casa, na Rua das Saudades, pode vê-las penduradas como cortinas de renda balançando ao vento. Por detrás dos vazios dessas cortinas a casa abre-se hospedeira: os móveis também aprenderam o ofício e sequestram o olhar do visitante indeciso entre ouvir a história do pescador ou o segredo do bule sufocado pela xícara malabarista trepada no bico.
“Quase nem dá pra acreditar” duas vezes repetiu Dona Lurdinha enquanto a história era enredada pelas mãos habilidosas do marido. A mordida e a dor que o abraçava e apertava por dentro. A noite grande e gulosa envolvendo a mulher solitária. A panela vazia de pão e peixe. O sangue envenenado. A morte, à espreita, companheira no quarto de hospital. Junto com os fatos, a rede de Seu Joca toma forma e parece boiar sobre o rio de lágrimas que o passado escamoso traz.
O relato é interrompido: pássaros cruzam o ranchinho onde não sei há quanto tempo conversamos. O relógio colorido destaca-se entre as flores e folhagens que adornam o lugar. (Meio-dia?). “Parou. Só está aí para ensinar ao neto as horas” revela a mulher com a voz líquida e atemporal. Então, o relógio, também ele sequestra o tempo?
Silêncio e expectativa até que o cardume invisível se aproxima novamente. Prendemos a respiração para não espantá-lo, afinal, qualquer movimento brusco pode torná-lo às águas escuras da lembrança. Seu Joca voltou a contar.
A fé. O milagre do sangue. A ressurreição do corpo. O bom à casa torna. Rios que se cruzam e desabam dos olhos. “Lançai a rede à direita do barco, e achareis”. Lançou-a.
Lancei-a. Eis, agora, a rede leve-pesada da grande quantidade de nós e peixes. “Quase não dá para acreditar” arremata dona Lurdinha, com os olhos fitos num pequenino lambari de rabo vermelho que escapou por entre os fios que compõem o xadrez da malha. Quase não daria para acreditar não fosse o peso do chumbo fundido pelo casal e engenhosamente amarrado às pontas da rede.
Agora, outras linhas se embaraçam. Livres do enredo da antiga história as mãos de Seu Joca e Dona Lurdinha repousam uma na outra... (O relógio marca meio-dia). Ao redor redes balançam com o vento: testemunhas de um tempo que o neto, quando aprender as horas, também poderá contar.
“Não vale as penas”. Ele repete com olhos de uma fundura cristalina. “História antiga, quem se importa?”. “De que vale tanta malha?”.
Vale. Silêncio cheio e gordo. Que peixes e plantas enroscam-se nessa calmaria? Que fundo é tão fundo que nem minha tarrafa se atreve mais a perturbar? No intervalo desse meio-dia sem fim, a fonte e a foz de todas as palavras: amor.
Desisto do conto. Uma vara, dois mil metros e meio de linha e um gerânio azul na ponta: a isca perfeita para capturar essa não-palavra, essa não-história que nada tranqüila nas profundezas de dois olhares. Gerânios azuis.  Impossível deter, mas o relógio me segredou que é peixe grande.
[Geruza Zelnys, Conto Vencedor do Mapa Cultural Paulista 2011-2012]













0 comments:

Post a Comment

Uma história de fadas

  Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo ...

 
;